OS PROBLEMAS DO SOFRIMENTO NO LIVRO DE JÓ
Na história de Jó, o problema do mal no mundo não è tratado de
modo abstrato, mas, sim, em termos da agonia de um só homem. Os
três amigos de EM fizeram o melhor que podiam para aplicar princípios
gerais ao caso de Jó; mas não conseguiram ajudá-lo, e aquilo que disseram
foi finalmente declarado inválido pelo próprio Deus. Esta é uma surpresa,
porque os seus argumentos têm a aparência da sã doutrina.
À rigor, a desgraça humana, ou o mal em todas as suas formas, é
um problema somente para a pessoa que crê num único onipotente e todoamoroso.
Fora desta crença, há muitas explicações para o mal que envolvem
uma negação ou limitação, da soberania ou da bondade de Deus.
O argumento tem sido expressado com clareza filosófica da seguinte maneira:
Se Deus fosse perfeitamente bom, não toleraria a existência da violência,
da doença, etc.; logo, deve haver algum limite à Sua capacidade
de controlar tais eventos, ou seja: Ele não é onipotente. Alternativamente,
se Deus realmente tem poder completo sobre tudo que acontece, Sua omissão
em refrear os males que ocorrem, deve-se forçosamente ao fato de que
Ele não vê nada de errado neles, ou seja: Ele não é bom.
Muitas pessoas que pensam, horrorizadas pela impotência da humanidade
diante dos desastres naturais, ou ultrajadas pela exploração impiedosa
dos “tripudiados e lesados” pelos donos inescrupulosos do poder
político ou econômico, perderam a fé na bondade de Deus. “Se eu tivesse
o poder de Deus,” protestam, “eu poderia fazer mais do que Ele parece
fazer para solucionar estes problemas!”
Uma teodicéia racional - a justificação dos caminhos de Deus
diante dos homens — é uma tarefa legítima para a apologética cristã.
O livro de Jó não é um tratado deste tipo; é a história de um homem, da sua perda, da sua procura, e da sua descoberta. Esta procura ocorre
inteiramente dentro da família da fé. Todas as personagens, os três
amigos e Eliú como também o. próprio Jó, são plenamente, dedicados
à fé num único Deus supremo que é inquestionavelmente justo em todos
os seus atos. As soluções que ficam fora de semelhante revelação bíblica
não são sequer consideradas no livro de Jó. O politeísmo, em que cada
deus tem seu próprio domínio limitado, sobrevive numa forma mais
simples em vários tipos de dualismo, em que o mal (talvez na pessoa do
Diabo) existe em contraste com o bem. A crença naturalista num universo
fechado em que Deus nada faz, tem achado expressão na teologia
de “Deus está morto.” É outro tipo de dualismo; ainda que se diga que o
mundo foi criado por Deus, Sua remoção efetiva do cenário é um farrapo
do deísmo, digno de pena ao lado da robusta crença bíblica de que Deus
é dono do mundo, onde está operante. De modo semelhante, o livro de
Jó não aceita sugestão alguma da limitação do poder ou da bondade
de Deus.
Como o restante da Bíblia, o livro de Jó também leva o mundo a
sério. Foi feito por Deus, é a propriedade de Deus, e é bom. Embora
Deus Se deleite com todas as Suas criaturas, os seres humanos são Seus
amigos especiais, porque somente os homens compartilham com Deus
a sabedoria que é a Sua imagem neles. O homem pode falar com Deus, e
Deus lhe responde. A existência humana como criatura de Deus neste
mundo também criado, demonstra visivelmente a supremacia da bondade
de Deus. Daí a insistência de Jó numa vida relevante, aqui e agora, embora
a vida do homem deva ser compreendida na totalidade que abrange o nascimento
e o tempo e a morte.
Mas esta alegre aceitação da condição de criatura, esta insistência
em ver a bondade do Senhor na terra dos viventes, explica a relutância
de Jó em adiar a satisfação até depois da morte, embora espere confiantemente
que continuará a viver com Deus depois daquele evento. A questão
moral central para Jó surge do ensino bíblico de que o homem ceifa
o que semeia — nesta vida. As recompensas para a virtude e os castigos pelo
vício não podem ser totalmente adiados para o céu e o inferno. Mas os
problemas e os benefícios não são distribuídos à humanidade por uma justiça
imparcial, conforme pareceria. Os ímpios prosperam, os justos sofrem.
O mal não é sempre - não freqüentemente! — castigado na proporção
da culpa; o bem não é sempre — não freqüentemente! — recompensado
na proporção do mérito. O caso de Jó apresenta o teste da fé na sua forma
mais severa — o homem supremamente justo que suporta as agonias mais extremas. Como pode ele, òu qualquer outra pessoa, continuar a acreditar
que Deus é justo e imparcial naquilo- que, às vezes, faz com as pessoas?
Não pode haver dúvida de que Deus, e somente Deus, é responsável por
tudo quanto acontece a Jó. A culpa não pode ser atribuída à “Natureza”
ou ao Diabo, porque são apenas Suas criaturas.
Vale a pena observar que uma solução que as religiões orientais
têm achado atraente, viz., a reversão das desigualdades de uma existência
mediante a compensação nalguma reencamação futura, nunca acha apoio
no pensamento bíblico, com sua consciência vívida da qualidade única
e exclusiva individual de cada homem na história.
Devemos notar, também, que o livro de Jó não apela para uma
linha de pensamento que tem sido suprema no cristianismo ocidental
desde o triunfo de Agostinho sobre Pelágio. O dogma da depravação e
culpa originais e hereditárias de toda a humanidade, negando qualquer
possibilidade de bondade na conduta humana, deve contradizer a premissa
do livro de Jó, de que seu herói era um homem “íntregro e reto” (1.1).
Os amigos de Jó são aqueles que insinuam, conforme devem insinuar a
fim de salvaguardar a doutrina de que cada pessoa colhe o que semeia,
que Jó está pagando seus pecados. Nesta base, não existe o que se pode
chamar de homem justo, ninguém nunca recebe tanto castigo quanto
merece, e a maioria recebe muito menos. Portanto, a insistência de Jó na
sua integridade, não pode passar de hipocrisia, aumentando o seu pecado.
Assim falam os amigos de Jó, com o som da ortodoxia. Não é de se admirar
que os comentaristas cuja exposição é controlada pelas doutrinas tradicionais
da queda e da corrupção de todos os membros da raça humana,
tenham se juntado aos amigos de Jó ao condená-lo, e tenham visto o propósito
de Deus como disciplina para levá-lo ao arrependimento. Tais interpretações,
no entanto, esmigalham-se diante da palavra do próprio Deus
de que Jó é “íntegro e reto” e de que ele, e não os amigos, estava correto
naquilo que disse na discussão. Ou seja: Jó estava com a razão, mas não
tinha justiça-própria ao insistir na sua própria integridade, ao queixar-se
que seus sofrimentos não eram merecidos, e ao exigir do próprio Deus
uma explicação de como Sua justiça podia ser achada em tamanho suplício
imerecido. O livro de Jó perde sua razão de ser se a justiça de Jó não
for entendida como sendo genuína.
A aprovação final dos discursos de Jó por Deus também é surpreendente
por outra razão. Silencia a beatice daqueles que nos lembram
acerca da inescrutabilidade de Deus, e que dizem convencidos: “Não
nos compete questionar os caminhos do Onipotente!” Pois é exatamente isto que Jó faz, e Deus diz que estava plenamente justificado ao assim
fazer. 0 Senhor recebe bem o exercício do julgamento moral da parte
do homem, até mesmo quando é dirigido em julgamento contra o próprio
Deus!
A injustiça aparente de Deus é vista na divisão desproporcional de
males que sobrevêm a muitas pessoas boas. A experiência contradiz o
ensino de que cada pessoa colhe o que semeia. Dentro da estrutura aceita
da crença comum de que Deus é soberano e justo, Jó e os demais locutores
reúnem a maioria das soluções para este problema que são apresentadas
na Bíblia. Quando os ímpios prosperam e os justos sofrem, é necessário
algo mais do que uma simples doutrina de recompensas e castigos.
A Bíblia, inclusive Jó, tem várias maneiras distintas de conciliar
o sofrimento humano com a justiça de Deus. A maioria delas são ouvidas
dos lábios dos amigos de Jó, e Jó as acha insatisfatórias. Mas se não satisfazem
completamente, e se, em especial, não se aplicam ao caso de Jó,
isto não significa que estão erradas. O que toma tão dramática esta colisão
de pensamentos é a qualidade sadia dos seus pontos de vista e a validade
dos seus argumentos. O autor não colocou testas de ferro contra Jó.
Quanto a isto, o argumento termina num empate forçado, conforme reconhece
Eliú.
A aliança de Javé com Israel colocou dois caminhos diante do povo
- a vida, através da obediência, ou a morte, através da infidelidade. Uma
simples correlação destas causas e dos seus efeitos é expressa nas maldições
e nas bênçãos recitadas com a aliança (Lv 26; Dt 27-30). Colocada de modo
simples: colhe-se aquilo que semeia (G1 6.7; SI 34.11-32; 1 Pe 3.10).
Este é o ponto de partida de muitos ensinos bíblicos. Não são apenas
ameaças e subornos; a administração moral do mundo, da parte de Deus,
requeria que a convicção do certo levasse ao bem-estar, e que o erro levasse
à desgraça. Mas a conexão não é freqüentemente óbvia, e a vida é muito
mais complexa do que esta fórmula simples. O sofrimento humano é
mais do que um sistema de recompensas e castigos.
Homens santos, meditando sobre este mistério, e ansiosos em proteger
da calúnia o caráter de Deus, viram que as aparências externas talvez
não ofereçam um quadro verdadeiro daquilo que acontecia entre um
homem e Deus. A prosperidade material do ímpio não é uma indicação
da sua felicidade, e permiti-la não foi um descuido da parte de Deus.
Os ricos realmente são muito infelizes, porque as riquezas são inseguras e
transitórias. Se foram adquiridas ilicitamente, a consciência deles teme
sempre um dia de acerto de contas. Em contraste, a alegria interior dos justos não pode ser destruída pelo infortúnio exterior, porque sua comunhão
com Deus está segura contra qualquer mudança devida às circunstâncias
(SI 73).
Por semelhante teste, Jó está condenado, e sua agitação é indesculpável.
Mas Deus não colocou cada indivíduo em isolamento, para
realizar-se exclusivamente na comunhão com Ele. Deus còlocou cada
homem com a família e os amigos e os objetos, com bens e com o seu
trabalho. Somente uma falsa piedade, um desdém para com as coisas como
sendo más (a heresia maniqueísta), um desprezo para com as emoções
como sendo fracas (o erro estóico), esperariam de Jó uma firmeza inflexível
em meio a tanta perda e dor. Jó tem razão em lastimar sua perda de
antes queridos; fica autenticamente deprimido pela sua doença. É humano.
A serenidade desimpedida que alguns receitam como sendo o alvo da
“vida vitoriosa” é uma negação de áfias inteiras da nossa experiência,
conforme Deus nos fez. Jó vive plenamente. A calma atingida, no fim,
pelo salmista (SI 73:23-28), e por Jó também, foi galgada somente através
de sofrimento terrível, e como resultado dele.
Os homens procuram uma explicação do sofrimento na causa e no
efeito. Olham para trás para uma conexão entre o pecado passado e o
sofrimento presente. A Bíblia olha para a frente com esperança, e procura
explicações, não tanto em origens quanto em alvos. O propósito
do sofrimento é visto, não na sua causa, mas, sim, no seu resultado. O homem
nasceu cego a fim de que as obras de Deus fossem manifestadas
nele (Jó 9.3). Mas às vezes o bem nunca parece proceder do mal. Os homens
esperam em vão. Acham irritante a lentidão de Deus. Perdem o
ânimo, é freqüentemente perdem a fé. A Bíblia recomenda o auto-controíe
que vem de Deus. As operações da Sua justiça durante os longos
processos da história, que às vezes requerem períodos de muitos séculos,
fazem parte da nossa existência no tempo. É mais fácil ver a mão de Deus
em atos espetaculares e imediatos, e o pecador que não é instantaneamente
corrigido tem a probabilidade de desprezar a demora de Deus em executar
a justiça como um sinal de que Ele está indiferente ou até mesmo
ausente. Temos de ser tão pacientes quanto o próprio Deus para vermos
o resultado final, ou continuar vivando pela fé, sem vê-lo. No devido tempo
ceifaremos, se não desfalecermos.
Há, portanto, passagens na Bíblia que adiam a resolução das incongruências
na administração moral divina para o último momento escatológico,
ou até mesmo para, uma ocasião além da própria história.
O livro de Jó está avançando nesta direção, mas sua atenção está focalizada principalmente nesta vida. Havendo tempo suficiente, o perverso receberá
o que merece com justiça, e o justo achará livramento e compensação.
Este ensino, expresso por Zofar em Jó 20, submete a fé de
Jó a uma tensão. Ele não pode esperar indefinidamente para ver a justiça
feita. Contradiz Zofar de modo vigoroso (capítulo 21). E mesmo se tudo
for endireitado mais tarde, isto poderá alguma vez neutralizar os maus
tratos que as pessoas receberam antes daquele acerto de contas posterior?
A resposta bíblica é que Deus (mas somente Deus!) realmente pode transformar
o mal em bem, de modo que em retrospecto (mas somente em
retrospecto!) é percebido que realmente foi bom, sem diminuir nem
um pouco a realidade horrível do mal experimentado na ocasião.
Se o livro de Jó não pode assumir esta plena dimensão escatológica,
é, em grande medida, porque ainda não tem a chance de incluir Jesus
Cristo no quadro. Porque nEle, os maiores males, a traição e a crucificação
do Filho de Deus, tomam-se, e agora são, o maior bem para toda a
humanidade. Jó vê parte da resposta ao ensinar que, depois de passada
a experiência, o sofredor a apreciará de uma maneira nova por causa daquilo
que aprendeu. O sofrimento não é sempre punitivo nem mesmo corretivo.
Pode ser instrutivo. É uma disciplina e uma advertência. Este é
um tema sapiencial comum (Pv 3:11; Hb 12:12-13). Isto é afirmado
por Elifaz (Jó 5.17) e especialmente por Eliú. O sofrimento é moralmente
terapêutico e profilático.
Tais respostas à pergunta de qualquer homem: “Por que estou
sofrendo?” são confinadas ao indivíduo. São caras e válidas, porque
levam a pessoa humana a sério nas suas conexões morais com Deus.
Nenhum indivíduo, no entanto, existe em isolamento. A Bíblia considera
o homem como um ser singular e social. A responsabilidade individual
era enfatizada por Jeremias e por Ezequiel, não como a única verdade,
nem mesmo como a verdade mais sublime, mas, sim, para corrigir
o erro daqueles que citavam um provérbio acerca da solidariedade social
(“Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos é que se embotaram”)
a fim de fugirem da culpa.
Nenhum lado dá o quadro total. Cada homem fica em pé diretamente
diante de Deus, mas nenhum homem fica sozinho. Um homem
peca, e as conseqüências multiplicam-se através da raça inteira. Outras pessoas têm mais probabilidade de lucrar com a bondade de um homem
do que ele mesmo. Cada um está vinculado a outros, e, em última análise,
todos estão numa vasta teia de relações interpessoais. Nunca o sofrimento
de alguma pessoa é completamente particular, seja nas suas causas,
seja nos seus resultados. A Bíblia reconhece como fato que as conseqüências
do mal são herdadas dos nossos antepassados, compartilhadas com
nossos contemporâneos, deixadas como herança à posteridade. Esta ênfase,
então, escapa de um problema para cair noutro. Se a desgraça é um
castigo para o pecado, por que Jó deveria sofrer pelas culpas de qualquer
pessoa senão as dele mesmo? Jó sabe que suas aflições são causadas
por criminosos, pelas forças da natureza^. pela doença — coisas que poderiam
acontecer para qualquer pessoa. Sabemos que por detrás destes
eventos havia a malícia de Satanas. Mas por detrás daquilo é mais difícil
ver a eqüidade de Deus, e muito menos Suas boas intenções.
Mesmo assim, a despeito destes pensamentos perturbadores, faz
parte da resposta o fato que a pessoa pode aceitar o sofrimento de bom
grado como sendo o tributo que paga à liberdade doutras pessoas. Pode
moderar-se por causa da lembrança de ocasiões em que causou danos a
outras pessoas, deliberada ou descuidadosamente. E, quando é tentado
a queixar-se: “Por que Deus não os impediu de fazerem aquilo contra
mim?” Poderia perguntar a si mesmo como seria sua vida se Deus paralizasse
seu braço cada vez que o erguesse para agredir aos outros ou
para furtar.
Faz parte da resposta a possibilidade de uma pessoa compartilhar
dos fardos de outros. O preço pago por isto pode ser o sofrimento. Mas,
quando é feito com amor, semelhante sofrimento toma-se a tarefa mais
nobre da pessoa. Este aspecto da questão quase não se vislumbra em Jó.
Que o sofrimento pode ser voluntário e vicário é uma das mais assombrosas
e libertadoras de todas as verdades reveladas na Escritura. Suportar
com paciência a injustiça pode conquistar o mal pelo amor. O sofredor
pode fortalecer aos outros pelo seu exemplo. Os males da vida podem
tomar um homem doce ou amargo. O metal não tem força alguma se não
for temperado ao fogo.
Como um grande auto-sacrifício, o sofrimento pode ser redentor.
Deve ser reconhecido que esta parte da revelação do Antigo Testamento,
com sua mais clara expressão em Isaías 52.11 — 53.12, quase não é discutida
por Jó e seus amigos.
A Bíblia procura afirmar duas verdades contrárias que se chocam
no livro de Jó. O sofrimento é o fardo comum de todos os homens e o fardo individual de cada homem. É explicado como sendo punitivo, corretivo,
exemplar e vicário. Olhando por um ângulo, o sofrimento é infligido
por Deus com justiça; por outro ângulo, pode ser aceito pelas
pessoas com amor.
Estas verdades devem ser declaradas com grande sensibilidade
pastoral para se tomarem reais a qualquer sofredor. É assombroso como
podem se tomar triviais, antiquadas ou hipócritas nos lábios dos amigos
de Jó. Sua inaptidão nâo toma inválido aquilo que dizem. As verdades
dos seus discursos nâo podem ser abandonadas sem tornar o universo
um caos moral. Eles estão com toda a razão, até onde chegam. O ensinamento
da Bíblia é claro: “Deus não faz acepção de pessoas.” “Paga
a cada homem de acordo com seus feitos.” Aqui começa a justiça, mas
não é onde termina o amor. Estas verdades não abrangem todos os fatos.
Certamente não se aplicam a Jó, conforme ele, Deus e nós, os leitores,
sabemos. Mas os amigos de Jó não conseguem perceber a inocência do
seu coração conforme Deus a percebe; não podem detectar a boa vontade
de Deus — e nem Jó pode. Devem fazer o melhor que podem com a
teologia que possuem, assim como nós também devemos.
Os amigos de Jó tinham boas intenções, mas eram presunçosos.
O caso de Jó era “especial” e escapa às doutrinas generalizadas. Nada a
não ser a Voz em meio ao redemoinho pode estar à altura do seu caso,
e quando aquilo acontece, Jó mantém seu segredo. Além da fronteira
alcançada pela melhor compreensão humana da revelação de Deus -
porque devemos lembrar-nos de que a teologia dos amigos de Jó é excelente
— há o abismo do sofrimento não merecido onde Jó é lançado.
O caso de Jó abre toda uma nova dimensão. Há uma vasta área de sofrimento
humano que não é .penal, nem terapêutica, nem redentora.
Permanece simplesmente sem sentido. A resposta à pegunta: “Quem
pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?”, é: “Ninguém pecou”
(Jó 9.2-3). Jó não pecou (Jó 1.22).
Condenar o pobre miserável como sendo alguém que já foi rejeitado
por Deus é a maior crueldade humana. Os amigos de Jó, procurando
aplicar seus melhores conhecimentos para ajudá-lo a chegar à recuperação
espiritual, aumentam a sua dor sem terem esta intenção. Ele precisa
de compaixão, não de conselhos. A incapacidade de Jó é patética. Se
tivesse pecado, poderia arrepender-se. Mas não pode desonestamente
inventar pecados para se arrepender deles. Nada pode fazer, senão das
profundezas clamar a Deus (SI 130.1). Neste abismo de ira ele está sozinho,
até que descubra que Deus não o desertou de modo permanente.
Mas, como Jesus, não recebe de início — não por muito tempo! — qualquer
resposta ao Seu clamor desolado: “Deus. meu, Deus meu, por que
me desamparaste? Mesmo assim, a via dolorosa toma-se o caminho para
Deus. Maria pagou um preço por ter dado à luz o Filho de Deus; uma
espada atravessou seu próprio coração (Lc 2:35). Ela não podia escapar
à sua agonia, que também era seu privilégio santo e sua alegria. De todos
os seres humanos, o sofredor inocente fica mais perto de Deus. Pode-se
perguntar se há qualquer caminho para a luz, a não ser através do desamparo.
0 contentamento final de Jó não se explica a não ser pelo fato
de ter achado no vale da sombra da morte um lugar de crescimento espiritual.
A Bíblia, especialmente o Novo Testamento, vê dois lados para
esta oportunidade. Da agonia de ser abandonado por Deus vem um ministério
de compaixão que se estende a todos os companheiros nesta viagem
terrível (2 Co 1.3-7). O que é uma vergonha insuportável no momento
toma-se uma honra santa na lembrança. Moisés em Midiã, Davi no seu
esconderijo. Jeremias e José no buraco, Daniel na cova dos leões, Paulo
em várias prisões. Como Jó, sentado no depósito de lixo da cidade, pareceria
que sua vida tinha chegado ao fim. A longa espera, às vezes por
muitos anos. O silêncio de Deus. Mas veio a libertação, e com ela, uma gratidão
nunca sentida por aqueles que nunca haviam conhecido o desespero.
Os heróis da fé em Hebreus 11 eram todos sofredores, e muitos
deles morreram sem receber a libertação. Ora, nenhum sofrimento parece
agradável na ocasião, mas depois “produz fruto pacífico aos que têm
sido por ele exercitados, fruto de justiça” (Hb 12.11). Não se trata de
algo que alguém consegue por si mesmo a fim de ganhar benefícios espirituais.
Somente Deus pode enviá-lo. Ninguém que já tenha sentido Sua
vara desejaria trilhar novamente aquele caminho; mas ninguém que,
como Jó, conheceu “o plano do Senhor que finalmente terminou em
bem” (ver Tg 5.11 BV) desejaria em qualquer momento não ter passado
por aquele caminho. 0 corpo de Jesus leva eternamente as chagas da
crucificação, e elas são sua glória principal. Se a paixão de Jó foi um
esboço primitivo do maior Sofredor, importa aos Seus seguidores posteriores
entrarem na “comunhão dos seus sofrimentos” (Fp 3.10) e alegremente
preencherem o que resta para completar os sofrimentos de
Cristo (Cl 1.24). Ele, pois, é o Peregrino e Pioneiro principal deste caminho,
“homem de dores e que sabe o que é padecer” (Is 53.3). Seu
Getsêmane foi uma experiência humana, mas sobrepuja todas as demais
na sua intensidade e no seu poder de curar. Todo o fardo das nossas ansiedades & esmagou. Aquilo que Jó desejava cegamente, realmerfte aconteeeu.
O próprio Deus esteve conosco em nosso infemo de solidão, e
adquiriu uma nova perfeição através daquilo que Ele suportou (Hb 5.7-9).
Todos os “significados” do sofrimento apontam para Cristo. Entrou num
âmbito de sofrimento somente a Ele reservado. Nenhum homem pode
canegar o pecado doutro, mas Jesus carregou os pecados de todos. Como
o Substituto de todos os pecadores. Sf ’is sofrimentos eram penais, eram
o suportar da pena de morte pelo pecaJo. Eram, também, uma participação
plena e autêntica na nossa condição humana com um amor que
se deu completamente na fornalha da aflição. O fato de o próprio Senhor
ter abraçado £ absorvido» todas as conseqüências imerecidas de todo o
mal é a resposta final a Jó e a todos os Jós da humanidade. Como sofredor
inocente, Jó é o companheiro de Deus.