quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A DOUTRINA DO PECADO

Há algo errado no homem e com o homem. Testemunhamos o ser humano realizando os mais sublimes heroísmos e os mais horrendos atos. Ele tem capacidade de conceber as coisas mais puras e belas e, ao mesmo tempo, praticar as ações mais sórdidas. E como uma máquina que, tendo sido construída para trabalhar com perfeição, foi danificada a tal ponto que todo o seu funcionamento ficou comprometido.
Desde cedo, o homem pode perceber sua dicotomia entre discurso e prática, entre o que deseja e o que faz. As vezes, até tem plena consciência de onde quer chegar, mas erra o alvo de forma escandalosa. Os melhores homens já foram flagrados nos mais grosseiros erros. E isto tudo em escala universal, independente de raça, cor, posição social, cultura ou formação. A história humana é a história da degradação humana. Muitas vezes, tem sido questionado se o homem é realmente um ser racional. Este abismo entre o que se espera dele e o que efetivamente se tem, é causa de grande espanto.[1]
E justamente nesta grande incógnita que entra a revelação da Palavra de Deus. E ela quem vai explicar a origem, a extensão e as consequências da degradação humana. Ela nos possibilita entender porque o homem é assim, porque não deve continuar assim e o que Deus fez para reverter essa situ- ação. As filosofias humanas apenas detectam o fato. Somente a revelação divina é capaz, de fato, de esclarecer o problema.
A existência do pecado, de uma forma ou de outra, sempre perturbou a vida humana. Os homens têm que conviver com esta deficiência, têm que se amoldar a ela, criar inúmeros dispositivos para inibir seus efeitos. Anseia por uma solução definitiva que possa resolver a questão de uma vez por todas. E uma guerra sem tréguas, para a qual não existe descanso.
Na maioria das vezes, porém, o homem se rende a esta força e se torna seu refém. Torna-se um prisioneiro de seus próprios vícios. Sua vida toma uma proporção tal que o escraviza e o obriga a atitudes que ele mesmo não entende. Esses vícios são de várias espécies que, quando alguém escapa de algum tipo de corrupção, sempre acaba caindo em outra. De modo que, mesmo sendo virtuoso em determinada área, é, às vezes, completamente depravado em outras.

DEFINIÇÃO DE TERMOS
Os termos bíblicos para designar o pecado são variados. No hebraico os mais comuns são hata't (em diversas formas da mesma raiz), 'awon, pesha', ra', e no grego temos hamartia, hamartema, parabasis, paraptoma, poner/a, anomia e adikia. Existem distinções expressas através desses termos; refletem eles os diferentes aspectos mediante os quais o pecado pode ser contemplado. O pecado é fracasso, é erro, é iniquidade, é transgressão, é contravenção, é falta de lei, é injustiça. É um mal insolúvel. Porém, a definição do pecado não pode ser derivada simplesmente dos termos bíblicos para denotá-lo. A característica mais notável do pecado, em todos os seus aspectos, é que é orientado contra Deus. [2]
Segundo Agostinho, o pecado não deve ser considerado em termos positivos, mas negativos, como privação do bem. Ele define a essência do pecado como concupiscência (concupiscentia), palavra usada para traduzir o sentido bíblico de desejo carnal, mas entendida por Agostinho como amor-próprio pervertido, oposto do amor a Deus.
Calvino contesta Agostinho, argumentando que o pecado não deveria ser meramente concebido como privação do bem, mas, sim, corrupção total do ser humano.
À primeira vista, a definição que Barth dá de pecado, como uma “insignificância” , uma “possibilidade impossível” , pode parecer semelhante à ideia de Agostinho, de privação do bem. Mas Barth não está falando meramente de “privação”. “Insignificância”, no caso, não tem o sentido ou o significado de “nada”; é aquela contradição da vontade positiva de Deus e quebra de seu pacto, que somente pode existir sob a contradição que é o seu julgamento. Assim, o pecado é o orgulho humano, a contradição da humilhação que Deus faz de si mesmo em Cristo. Neste caso defendemos o posicionamento reformado que pecado é desobediência ao mandamento divino, rebelião contra Deus.
A teologia da libertação entende que o pecado é a opressão de um grupo da sociedade por outro. Os teólogos da libertação frequentemente combinam as teorias econômicas de Karl Marx (que falam da luta entre as classes, em que o proletariado acabará vencendo a burguesia) com temas bíblicos (tais como a vitória de Israel contra a escravidão) e também identificam os oprimidos pelo emprego de termos econômicos, raciais, de distinção entre os sexos e outros. O pecado é eliminado pela remoção das condições sociais que provocam a opressão. Os extremistas propõem a derrubada violenta dos opressores irredimíveis, ao passo que os moderados enfatizam a mudança através da ação social e da educação
Tanto Lutero como Calvino entendiam o pecado original não como uma compulsão externa, mas como uma necessidade interna, enraizada na perversão da própria natureza humana. A cruz de Cristo e a condenação do pecado humano que ela representa revelam a objetividade e a depravação total do nosso estado pecaminoso, tal como justamente revelam a total incompetência da redução existencialista do nosso pecado em termos de “existência inautêntica”, ansiedade ou desespero.[3]
O AT não ensina apenas que o pecado é um ato contra Deus (Núm 27,14; 2Rs 17,9 etc.), mas também o apresenta até certo ponto como malum, ipsíus Dei, como ofensa pessoal de Deus.[4]
Termos hebraicos e gregos da Bíblia para pecado:
No Antigo Testamento. Encontramos no Antigo Testamento pelo menos oito palavras básicas que conceituam o pecado; no Novo Testamento, temos, pelo menos, doze outras que descrevem as várias formas de manifestações negativas relacionadas com o termo “pecado”. No étimo das palavras mencionadas no Antigo Testamento descobrimos a abrangência do pecado em suas manifestações.
1) Hatta’t. Este vocábulo, que aparece 522 vezes nas páginas veterotestamentárias, e seu termo correlato no Novo Testamento — hamartia — sugerem a ideia de “errar o alvo” ou “desviar-se do rumo”, como o arqueiro antigo que atirava as suas flechas e errava o alvo. Porém, o termo também sugere alguém que erra o alvo propositadamente; ou seja, que atinge outro alvo intencionalmente.
Não se trata de uma idéia passiva de erro, mas implica uma ação proposital. Significa que cada ser humano tem da parte de Deus um alvo definido diante de si para alcançá-lo. O termo em apreço denota tanto a disposição de pecar como o ato resultante dela. Em síntese, o homem não foi criado para o pecado; se pecou, foi por seu livre-arbítrio, sua livre escolha (Lv 16.21; SI I.I; 51.4; 103.10; Is 1. 18; Dn 9.16; Os 12.8).
2) Pesha. O sentido tradicional dessa palavra é “transgredir”, “rebelar”, “revoltar-se”. Porém, uma variante forte para defini-la implica o ato de invadir, de ir além, de rebelar-se. O termo aponta para alguém que foi além dos limites estabelecidos (Gn 31. 36; I Rs 12.19; 2 Rs 3.5; SI 51.13; 89.32; Is 1.2; Am 4.4).
3) Raa. Outra palavra hebraica que tem seu equivalente no grego — como kakos ou poneros — e traz a ideia básica de romper, quebrar; “aquilo que causa dano, dor ou tristeza”. E um tipo de pecado deliberado, malicioso, planejado, que provoca e enfurece. Dá a ideia de “ser mau” (Gn 8.21; Ex 33.4; Jr II.II; Mq 2.1-3). Indica também algo injurioso e moralmente errado. São os pecados expressos por violência (Gn 3.5; 38.7; Jz 11.27).
O profeta Isaías profetizou que Deus criou a luz e as trevas, a paz e o raa (Is 4.57). É o mal em forma de calamidade, ruína, miséria, aflição, infortúnio. Deus não tem culpa do mal existente, porque, na verdade, a responsabilidade pelos pecados cometidos recai, à luz da Bíblia, sobre a criatura rebelde, transgressora e incriminada, e não sobre o Criador.
4) Rama quer dizer “enganar”; dá a ideia de prender numa armadilha, num laço. Implica, portanto, um tipo de pecado em forma de cilada para outrem cair. É uma forma de enganar e agir traiçoeiramente (SI 32.2; 34.13; 55.11; Jó 13.7; Is 53.9).
5) Pata. E um termo que dá o entendimento de seduzir. O sentido literal da palavra é “ser aberto” ou “abrir espaço” para o pecado ter livre curso. No Éden, Adão e Eva se deixaram seduzir pelo engano do pecado e pelo pai do pecado (Satanás), personificado numa serpente (Gn 3.4-7).
6) Sbagag. O sentido aqui é “errar” ou “extraviar-se”, como uma ovelha ou um bêbado (Is 28.7). E um tipo de erro pelo qual o transgressor torna-se responsável, ante a lei divina que condena o seu erro — pecado (Lv 4.2; Nm 15.22).
7) Rasba. Esta palavra aparece especialmente nos Salmos, com a intenção de impiedade ou perversidade. O sentido metafórico é o pecado em oposição à justiça (Êx 2.13; SI 9; SI 16; Pv 15.9; Ez 18.23).
8) Ta a. Este vocábulo se refere ao ato de extravio deliberado. Não se trata de algo acidental, e sim algo que uma pessoa comete sem perceber o fruto negativo gerado pelos seus atos pecaminosos (Nm 15.22; SI 58.3; 119.21; Is 53.6; Ez 44.10,15).
Existem outras variantes do termo que ensinam sobre o pecado no Antigo Testamento, mas nos detivemos apenas em oito deles que ilustram a diversidade e a perversidade do pecado em suas várias manifestações.
No Novo Testamento. No grego, a palavra “pecado” também tem vários sen- tidos, e alguns são correlatos com os termos hebraicos. Todos esses vocábulos do grego bíblico descrevem o pecado em seus vários aspectos. Apresentaremos uma lista menos extensa, mas igualmente proveitosa para definir o incisivas das palavras mais incisivas e usadas com mais frequência no Novo Testamento acerca do pecado.
1) Hamartia. Já citada em correlação com katta’a (hb.), seu sentido é “errar o alvo”, “perder o rumo”, “fracassar”. Indica que o primeiro homem, no princípio, perdeu o rumo de sua vida e fracassou em não atingir o padrão divino estabelecido para a sua vida. No Novo Testamento, os escritores usaram o termo hamartia para designar o pecado.
Ainda que o sentido equivalente no Antigo Testamento seja o de “errar o alvo”, nas páginas neotestamentárias a palavra em apreço tem uma abrangência bem maior — possui um sentido mais forte que a idéia de fracasso ou transgressão. Ela tem o sentido de “poder de engano do pecado” (Rm 5.12; Hb 3.13); é mais que um fracasso. Trata-se de uma condição responsável ou uma característica que implica culpabilidade.
2) Kakía. No grego, relaciona-se com perversidade ou depravação, como algo oposto à virtude. E um termo que descreve o caráter e a disposição interiores, e não apenas os atos exteriores. Dele deriva-se outra palavra, kakos, cujo sentido transcende a mal-estar físico ou doenças (Mc 1.32; Mt 21.41; 24.48; At 9.13; Rm 12.17; 13,3,4,10; 16.19; I Tm 6.10).
3) Adikía. Denota injustiça, falta de integridade; como alguém que abandona o caminho original. Em sentido amplo, esse termo refere-se a qualquer conduta errada e significa, ainda, “agravo”, “ofensa feita a alguém” (2 Co 12.13; Hb 8.12; Rm 1.18; 9.14). O texto de Romanos I.I8 descreve a injustiça como inimizade para com a verdade. Em I João 5.17, o apóstolo João afirma que toda iniqüidade (gr. adikia) é pecado (gr. hamartia').
4) Anomia ou anomos. Denotam ilegalidade; tais palavras são traduzidas frequentemente como “iniqüidade” ou “transgressão”. Porém, o sentido literal de literal de anomia é “sem lei”. Quem transgride a lei de Deus pratica a iniquidade (Mt 13.41; 24.12; I Tm 1.9). O Anticristo é anomos— “o iníquo” (2Ts 2.8).
5) Apistia. Deriva de pistis — “crer”, “confiar” — e significa “infidelidade”, “falta de fé” ou algum tipo de resistência ou vergonha (Hb 3.12; I Tm I.I3). Em I Timóteo I.13 está escrito: “... alcancei misericórdia, porque o fiz ignorantemente, na incredulidade [gr. apistia]”.
6) Aseheia. Usado por Paulo nas epístolas com o sentido de impiedade (Rm 1. 18; 11.26; 2 Tm 2.16; Tt 2.12; Jd vv.I5,I8). Portanto, a impiedade ou a irreverência são a base da aseheia.
7) Aselgeia. Denota relaxamento, licenciosidade ou mesmo sensualidade. Em Judas v.4 encontramos dois termos que explicam essas palavras: “... homens ímpios [aseheis] que convertem em dissolução [aselgeian, libertinagem’] a graça de Deus”. Esse termo descreve, pois, uma entrega sem restrições à prática do pecado. Os especialistas o descrevem como algo maldito que domina uma pessoa e a torna impudica de tal modo que perde totalmente o senso de vergonha e, por isso, faz qualquer coisa degradante sem ocultar seu pecado.
O termo em análise significa, por conseguinte, “a pura e auto-satisfação sem o menor pudor”, haja vista o desejo pelos prazeres tornar a sua vítima despudorada, sem restrições. As chamadas taras sexuais, a embriaguez e outras manifestações são típicas de aselgeia. Sem dúvidas, trata-se de uma das palavras mais repulsivas do Novo Testamento (Mt 7.22; 2 Co 12.21; G1 5.19; Ef 4.19; I Pe 4.3; Jd v.4; Rm 13.13; 2 Pe 2.2,7,18). A versão ARC traduz o termo por “libertinagem”, enquanto a ARA prefere “dissolução”.
8) Epithymia. Significa “desejo”. Porém, é o contexto da palavra encontrada no Novo Testamento que pode indicar o caráter moral do desejo, se é bom ou mau. Coisas, como: motivo, intenção, direção e relação, revelarão o caráter moral de epithymia (Mc 4.19; Lc 22.15; Fp 1.23; I Ts 2.17). De modo geral, o vocábulo quase sempre se identifica com algo negativo e pecaminoso. Daí o significado poderá indicar “desejo incontinente”, normalmente traduzido como “concupiscência”, “paixão impura” (G1 5.24; Cl 3.5; I Ts 4.5;Tg 1.14; 2 Pe 2.10).
9) Parahasis. Aparece nas páginas neotestamentárias umas oito vezes. O significado primário do termo é “transgressão”, que dá a idéia de alguém que não respeita as leis, passando dos limites estabelecidos. Emprega-se esse vocábulo com o sentido de “desvio”, “violação” e “transgressão”. No texto de Romanos 5.14, Paulo faz uma relação entre hamartia e parahasis, ao afirmar: “No entanto, a morte reinou desde Adão até Moisés, até sobre aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de Adão”.
O apóstolo Paulo não está dizendo que os que pecaram desde Adão até Moisés estão livres de culpa, e sim que aquelas gerações, não tendo a lei de Moisés, seu pecado era tão real quanto ao dos que tinham a lei. Em I Timóteo 2.14 está escrito que Eva caiu em transgressão (parahasis), ao ser enganada, porque ela foi rebelde contra a ordem divina. Não se tratava de reduzir a culpa de Eva, e sim reconhecer que ela podia ter evitado o pecado de desobediência.
10) Paraptoma. Deriva de parapipto e significa “decair ao lado de”, “perder o caminho”, “fracassar”. De modo geral, significa “lapso moral” ou “uma ofensa pela qual a pessoa é responsável”.1 Vários textos exemplificam o termo paraptoma (Mt 6.14; Rm 5.15-20; 2 Co 5.19; G1 6.19; Ef 2.1; Tg 5.16).
11) Planao. Tem um sentido subjetivo de pecado porque se refere àquele que se desgarra culposamente. A palavra “desgarrar” relaciona-se com a ovelha que foge do aprisco (I Pe 2.25); também significa levar, por meio do engano, outras pessoas ao mau caminho (Mt 24.5,6; I Jo 1.8).[5]

SUAS CONSEQUÊNCIAS
O pecado de Adão e Eva não foi um acontecimento isolado. As consequências no tocante a eles, à posteridade e ao mundo, tomam-se imediatamente evidentes.
a) A atitude do homem para com Deus A atitude alterada para com Deus, por parte
de Adão e Eva, deixa transparecer a revolução que então tivera lugar em suas mentes. Eles "esconderam-se da presença do Senhor Deus, o homem e sua mulher, por entre as árvores do jardim" (Gn 3.8), e procuraram encobrir-se com aventais de folhas (Gn 3.7), o que sem dúvida foi associado com o mesmo complexo de emoções. Criados para andar na presença e em comunhão com Deus, agora temiam encon-trar-se com ele (cf. Jo 3.20). A vergonha e o medo eram agora as emoções dominantes (cf. Gn 2.25; 3.7,10), indicando a deterioração que se processara.
b) A atitude de Deus para com o homem Não apenas houve alteração na atitude de
nossos primeiros pais para com Deus, mas também na atitude de Deus para com eles. Reprovação, condenação, maldição, expulsão do jardim são todas elas indicações sobre essa revolução da atitude de Deus para com eles. O pecado só vem do lado do homem, mas as suas consequências não. Voltam-se contra Adão e Eva aspectos do caráter divino dos quais não tinha havido qualquer indicação anterior à desobediência dos mesmos. O pecado faz surgir a ira e o desprazer de Deus, e é necessariamente assim, pois o pecado é a contradição daquilo que ele é. É impossível para Deus ser complacente para com o pecado. Deus não pode negar a si próprio.
c) As consequências para a raça humana A história subsequente do homem fornece e
catálogo de seus vícios (Gn 4.8,19,23,24; 6.2,3,5). A sequência de abundante iniquidade demonstra seus resultados na destruição da humanidade, com a exceção de oito pessoas (Gn 6.7,13; 7.21-24). A queda tivera efeitos permanentes não somente sobre Adão e Evt mas igualmente para todos os seus descendentes; há uma solidariedade racial no pecado e na iniquidade.
d) As consequências para a criação
Os efeitos da queda se estenderam até ao cosmos físico. "... maldita é a terra por tua causa..." (Gn 3.17; cf. Rm 8.20). O homem é a coroa da criação, feito à imagem de Deus e, por conseguinte, vice-regente de Deus (Gn 1.26). A catástrofe da queda do homem trouxe a catastrófica maldição contra tudo aquilo de que ele era a coma, e sobre o que lhe fora dado domínio. O pecado foi um acontecimento na dimensão do espírito humano, mas teve tremendas repercussões sobre a criação inteira.
e) O aparecimento da morte
A morte é a epítome da penalidade imposta ao pecado. Essa era a advertência ligada à proibição do Éden (Gn 2.17), e é a sua execução que emana da maldição proferida por Deus (Gn 3.19). A morte, no fenómeno dos acontecimentos externos, consiste na separação dos elementos integrais do ser do homem. Essa dissolução exemplifica o princípio da morte, a saber, a separação, e chega à sua expressão mais extrema na separação entre o homem e Deus, o que é ilustrado já no início pelo fato do homem haver sido expulso do jardim (Gn 3.23,24), pois o Éden servia de símbolo da presença e do favor de Deus.

A Natureza Pecaminosa
Conforme observamos em Rm 5.12-19, todo ser humano nasce com uma natureza pecaminosa. Isso significa que toda a humanidade naturalmente está inclinada a cometer pecados. Lucas ilustra isso da seguinte maneira:
43 "Nenhuma árvore boa dá fruto ruim, nenhuma árvore ruim dá fruto bom. 44 Toda árvore é reconhecida por seus frutos. Ninguém colhe figos de espinheiros, nem uvas de ervas daninhas. 45 O homem bom tira coisas boas do bom tesouro que está em seu coração, e o homem mau tira coisas más do mal que está em seu coração, porque a sua boca fala do que está cheio o coração". (Lc 6.43-45 – NVI).
Ou seja, o fruto é uma extensão da natureza da árvore. Assim como uma mangueira produz manga, ou uma goiabeira produz goiaba, a natureza humana naturalmente produz pecado. Assim, não nos tornamos pecadores porque pecamos, antes, pecamos porque somos pecadores. Por isso não precisamos fazer nenhum esforço para pecar, pois isso é feito naturalmente pelos seres humanos. O coração humano é essencialmente corrupto (Jr 17.9; cf. Gn 6.5). Paulo descreve sua própria natureza da seguinte maneira:
Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo. Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer, esse eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim. (Rm 7.18-20 – NVI; cf. Rm 1.18 – 3.20; 2Co 4.4; Ef 4.18,19; 2Tm 3.2-5; Tt 1.15).
De fato, “todas as esferas da humanidade estão contaminadas pelo pecado, o que os teólogos evangélicos têm chamado de depravação total.”[6] O corpo está corrompido pelo pecado (Rm 6.6,12; 7.24; 8.10,13); a razão está corrompida pelo pecado (Rm 1.21; 2Co 3.14,15; 4.4; Tt 1.15); a consciência está corrompida pelo pecado (Tt 1.15); as emoções estão corrompidas pelo pecado (Rm 1.26,27; Gl 5.24; 2Tm 3.2-4); a vontade está corrompida pelo pecado (Rm 6.17; 2Tm 2.25,26).
Assim, a Bíblia diz que aqueles que estão separados de Cristo estão espiritualmente mortos, vivem de acordo com os desígnios do diabo, do mundo e dos seus próprios desejos e pensamentos (Ef 2.1-3). Portanto, todos nós somos bons, desde que nossos desejos pessoais não sejam feridos e ameaçados. “Às vezes, a condição pecaminosa está coberta por um refinado verniz de encanto e bondade. No entanto, como a doutrina da depravação total ensina, por baixo verniz encontra-se um coração que não esta verdadeiramente voltado para Deus.”[7]

O PECADO ORIGINAL: UMA ANÁLISE TEOLÓGICA
Muitas tentativas foram feitas para construir um modelo ou teoria teológica que encaixassem esses parâmetros complexos. Algumas das teorias mais relevantes são consideradas aqui.
Conceitos judaicos. Três correntes principais são identificadas no judaísmo. A teoria predominante é a das duas naturezas: a boa - yetser tov - e a má - yetser ra' (cf. Gn 6.5; 8.21). Os rabinos debatiam sobre a idade em que esses impulsos se manifestam, e se o impulso mau é realmente iniquidade ou apenas instinto natural. Seja como for, os maus são controlados pelo impulso mau, ao passo que os bons o controlam. A segunda teoria diz respeito aos "vigilantes" (Gn 6.1-4), anjos cujo dever era fiscalizar a humanidade, mas que acabaram pecando com as mulheres. Finalmente, há conceitos de pecado original que antecipam o Cristianismo. Mais dramaticamente, o Midrash explica, por analogia, a morte do justo Moisés. Uma criança pergunta ao rei por que ela está na prisão. O soberano responde que é por causa do pecado da mãe dela. Semelhantemente, Moisés morreu por causa do primeiro homem que trouxe a morte ao mundo. Resumindo, o pecado original não é uma inovação paulina. Pelo contrario, Paulo, inspirado pelo Espírito Santo, desenvolveu-o de conformidade com a revelação progressiva.
O agnosticismo. Há os que sustentam não haver evidências bíblicas suficientes para uma teoria detalhada do pecado original. Qualquer assertiva quanto à pecaminosidade que vá além de uma conexão entre Adão e a raça humana é considerada especulação filosófica. Embora esteja correto que a doutrina não deve basear-se em especulações extra-bíblicas, é válida a dedução das Escrituras.
O pelagianismo. O pelagianismo enfatiza fortemente a responsabilidade pessoal na oposição à frouxidão moral. Pelágio (c. de 361 - c. de 420 d.C.) ensinava que a justiça de Deus não permitiria a transferência do pecado de Adão a outras pessoas e que, portanto, todas as pessoas nascem sem pecado e com total livre-arbítrio. O pecado é disseminado exclusivamente pelo mau exemplo. Por isso há uma possibilidade real de vidas sem pecado, e elas se acham dentro e fora da Bíblia. Tudo isso, porém, é antibíblico, além de anular as conexões que a Bíblia faz entre Adão e a humanidade. A morte de Cristo é reduzida tão-somente a bom exemplo. A salvação fica sendo meramente boas obras. A vida nova em Cristo não passa da antiga disciplina. Embora o pelagianismo tenha razão quando enfatiza a responsabilidade pessoal, a santidade e o fato de que alguns pecados são aprendidos, o movimento tem sido apropriadamente condenado como heresia.
O semipelagianismo. O semipelagianismo sustenta que, embora a humanidade tenha se enfraquecido com a natureza de Adão, sobrou livre-arbítrio suficiente para a iniciativa de ter fé em Deus, e então Ele corresponderá. A natureza enfraquecida é transmitida naturalmente a partir de Adão. Porém, como se sustenta a justiça de Deus após permitir que pessoas inocentes recebam uma natureza maculada e como é salvaguardada a natureza impecável de Cristo, ainda não foi bem explicado. Mais importante, em algumas formulações o semipelagianismo ensina que, embora a natureza humana esteja tão enfraquecida pela Queda, a ponto de ser inevitável que as pessoas pequem, a bondade inerente que possuem é suficiente para iniciar a verdadeira fé.
A transmissão natural ou genética. Essa teoria sustenta que a transmissão da natureza corrupta baseia-se na lei da herança. Toma por certo que as características espirituais são transmitidas da mesma forma que as naturais. Tais teorias mencionam usualmente a transmissão da natureza corrompida, mas não a da culpa. Mesmo assim, não parece haver base adequada para Deus infligir numa alma virtuosa uma natureza corrupta. Nem está claro como Cristo pode ter uma natureza plenamente humana e ao mesmo tempo livre do pecado.
A imputação mediada. A imputação mediada entende que Deus imputou culpa aos descendentes de Adão por meios indiretos, ou mediados. O pecado de Adão o fez culpado e, como castigo, Deus corrompeu-lhe a natureza. E, como ninguém da sua posteridade tomou parte na sua ação, nenhum de seus descendentes é culpado. Mesmo assim, recebem a sua natureza como consequência natural de serem descendentes dele (não como julgamento). Porém, antes de cometerem qualquer pecado real ou pessoal (que a sua natureza necessita), Deus os julga culpados de possuir aquela natureza corrompida. Infelizmente, essa tentativa de proteger Deus da inflição injusta da "culpa exclusiva" de Adão à humanidade resulta em acusar Deus de uma injustiça ainda maior - permitir que a corrupção, causadora do pecado, enfraqueça pessoas destituídas de culpa e depois julgá-las culpadas dessa mesma corrupção.
O realismo. O realismo e o federalismo (ver abaixo) são as teorias mais importantes. O realismo sustenta que o "tecido da alma" de todas as pessoas estava real e pessoalmente em Adão ("seminalmente presente", segundo o conceito traduciano da origem da alma), participando de fato do seu pecado. Cada pessoa é culpada porque, na realidade, cada uma pecou. A natureza da pessoa passa então a ser corrompida por Deus, como julgamento contra aquele pecado. Não há transmissão de pecado, mas a participação total da raça naquele primeiro pecado. Agostinho (354-430) aperfeiçoou a teoria, dizendo que a corrupção era transmitida mediante o ato sexual. Assim, conseguia manter Cristo livre do pecado original, porque Ele nasceu de uma virgem. W. G. T. Shedd (1820—94) acrescenta um argumento mais sofisticado: por baixo da vontade das escolhas de todos os dias há a vontade profunda, a "vontade propriamente dita", que determina a direção que a pessoa segue em última análise. Foi essa vontade profunda que realmente pecou em Adão.
O realismo tem pontos fortes. Não apresenta o problema da culpa de terceiros, a solidariedade de Adão e da raça no pecado daquele é levada a sério e parece bem explicada a expressão "todos pecaram", de Romanos 5.12.
Apresenta, no entanto, alguns problemas. O realismo possui todas as fraquezas do traducianismo extremo. O tipo de presença pessoal necessária em Adão e Eva distorce até mesmo Hebreus 7.9,10 (cf. Gn 46.26), a passagem clássica traducianista. A expressão "para assim dizer" (Hb 7.9), em grego, sugere seja entendido figuradamente o que se segue. Ideias como a de uma "vontade profunda" tendem a exigir e pressupor um conceito determinista, calvinista, da salvação. O realismo por si só não pode explicar por que ou em que base Deus amaldiçoa a terra.
Portanto, torna-se necessário algo como a aliança. Para a humanidade de Jesus ser isenta de pecado, Ele deve ter cometido o primeiro pecado em Adão, sendo posteriormente purificado; ou Ele não estava mesmo presente em Adão; ou Ele estava presente mas não pecou, e seus antepassados humanos diretos permaneceram sem pecado em suas gerações. Cada uma dessas opiniões apresenta dificuldades (uma alternativa é sugerida adiante). A ideia de que todos pecaram pessoalmente parece contradizer o conceito de que o pecado de um só homem fez de todos pecadores (Rm 5.12,15-19). Posto que todos pecaram em Adão, com Adão e como Adão, sugere terem pecado segundo o padrão do primeiro homem, o que contraria 5.14.
O federalismo. A teoria federal da transmissão sustenta que a corrupção e a culpa se estendem a toda a humanidade porque Adão era a cabeça da raça num sentido representativo, governamental ou federal quando pecou. Toda pessoa está sujeita à aliança entre Adão e Deus (a aliança adâmica - ou aliança das obras - por contraste à aliança da graça). Faz-se uma analogia com uma nação que declara guerra. Seus cidadãos sofrem, quer concordem com ela ou a condenem e mesmo sem terem participado da decisão. Os descendentes de Adão não estão pessoalmente culpados até realmente pecarem, mas vivem um estado de culpa e são passíveis do inferno por ter-lhes sido imputado - de conformidade com a aliança - o pecado de Adão. Por causa desse estado, Deus os castiga com a corrupção. Muitos federalistas, portanto, distinguem entre o pecado herdado (a corrupção) e o imputado (a culpa) da parte de Adão. A maioria dos federalistas são criacionistas no tocante à origem da alma, mas o federalismo não é incompatível com o traducianismo. A aliança com Adão incluía sua posição de despenseiro da criação - a base perfeita para Deus amaldiçoar a terra. Cristo, como cabeça de uma nova aliança e de uma nova raça, está isento do julgamento da corrupção sendo, portanto, impecável.
O federalismo tem pontos fortes. A aliança, como base bíblica para a transmissão do pecado, concorda razoavelmente com Romanos 5.12-21 e fornece mecanismos para a maldição da terra e para proteger Cristo do pecado. No entanto, apresenta algumas fraquezas. Romanos 7 deve descrever somente o conhecimento que Paulo tomou de sua própria natureza pecaminosa, e não a experiência física do pecado que o matava. Mais importante que isso, a transmissão da "culpa exclusiva" de Adão é frequentemente considerada injusta.
Uma teoria integrada. Várias das teorias acima podem ser combinadas para formar uma abordagem integrada, resultando numa teoria que faz distinção entre a pessoa individual e a natureza pecaminosa da carne. Quando Adão pecou separou-se de Deus, e isto produziu nele - como indivíduo e na sua natureza - a corrupção (inclusive a morte). Pelo fato de ele conter toda a natureza genérica, ela toda ficou corrompida. A natureza genérica é transmitida naturalmente ao aspecto individual da pessoa, o "próprio-eu" (como em Rm 7). A aliança adâmica é a justa base dessa transmissão e também da maldição contra a terra. O "eu" não é corrompido nem culpado por causa da natureza genérica, mas a natureza genérica o impede de agradar a Deus (Jo 14.21; 1 Jo 5.3). Ao chegar à idade da responsabilidade pessoal, o "eu", lutando contra a natureza, ou corresponde à graça preveniente de Deus na salvação ou realmente peca ao desconsiderá-la, de modo que o mesmo "eu" fica separado de Deus, tornando-se culpado e corrupto. Deus continua estendendo a mão para o "eu" mediante a graça preveniente, e o ele poderá aceitar a salvação.
Logo, Romanos 5.12 pode dizer que "todos pecaram" e que todos estão corrompidos e necessitando de salvação, mas nenhuma culpa é infligida àqueles que ainda não pecaram na realidade Isto é consistente com a luta descrita em Romanos 7. Nem todas as pessoas pecam da mesma forma que Adão (Rm 5.14), mas o pecado de um só homem realmente traz a morte e transforma todos em pecadores. E o faz mediante a aliança adâmica, um mecanismo paralelo à obra de Cristo, que é tornar justos os pecadores (Rm 5.12-21). Evita-se o semipelagianismo extremado, porque o "eu" é capaz reconhecer a sua necessidade, mas não pode agir com fé por causa da natureza humana genérica (Tg 2.26). Sendo o ficar separado de Deus a causa da corrupção, a união entre Cristo e sua parte da natureza genérica restaura-a à santidade. Por ter o Espírito Santo chegado a Maria na concepção do "eu" humano de Cristo, este era pré-responsável e, portanto, impecável. Essa disposição é justa, pois Cristo é o cabeça de uma nova aliança. Semelhantemente, a união entre o Espírito Santo e o crente na salvação é regeneradora. 37
Embora as Escrituras não afirmem explicitamente que a aliança é a base para a transmissão, há muitas evidências em favor dessa ideia. As alianças fazem parte fundamental do plano de Deus (Gn 6.18; 9.9-17; 15.18; 17.2-21; Êx 34.27, 28; Jr 31.31; Hb 8.6,13; 12.24). Houve uma aliança entre Deus e Adão. Oséias 6.7 - "Mas eles traspassaram o concerto, como Adão" - refere-se muito provavelmente a essa aliança, uma vez que a tradução alternativa ("homens", NIV margem) é tautológica. Hebreus 8.7, que diz ter sido a aliança com Israel a primeira, não exclui a aliança com Adão, pois o contexto indica que se trata da primeira aliança entre Deus e Israel (e não com a humanidade inteira). E há uma aliança (a Bíblia ARC emprega "pacto", "concerto" e "aliança" como sinônimos) explícita anterior, com Noé (Gn 6.18; 9.9-17). As alianças bíblicas são obrigatórias às gerações futuras, quer para o bem (Noé, Gn 6.18; 9.9-17) quer para o mal Josué e o gibeonitas, Js 9.15). As alianças são frequentemente a única base observável para o julgamento (os israelitas que morreram em Ai por causa do pecado de Acã em Jericó, Js 7; o sofrimento dos súditos de Davi porque este os numerou, 2 Sm 24). A circuncisão segundo a aliança podia até mesmo acolher crianças estrangeiras na nação de Israel (Gn 17.9-14).
Alguns estudiosos objetam que qualquer teoria que transmita a outras alguma consequências do pecado de Adão é inerentemente injusta, pois lhe imputa o pecado sem fundamento nem base. (Somente o pelagianismo evita totalmente essa objeção, ao tornar todos os seres humanos pessoalmente responsáveis. O "pecado pré-consciente" do realismo detém a maioria das dificuldades.) As alianças, no entanto, constituem base justa para esse tipo de transmissão, pelas seguintes razões: os descendentes de Adão teriam sido tão abençoados por causa do seu bom comportamento como foram amaldiçoados por suas obras más; a aliança certamente é mais justa que a mera transmissão genética; a culpa e as consequências transmitidas pelo concerto são semelhantes aos pecados da ignorância (Gn 20).
Há também o argumento de que Deuteronômio 24.16 e Ezequiel 18.20 proíbem o julgamento de uma geração para outra. Mas outros textos mencionam julgamentos assim (os primogênitos do Egito; Moabe; Ex 20.5; 34.6,7; Jr 32.18). E possível, no entanto, que os dois textos acima se refiram à chefia biológica como base insuficiente para transmissão de julgamento, ao passo que os textos mencionados entre parênteses referem-se a uma base pactuai, adequada à transmissão do julgamento. Alternativamente, segundo a teoria integrada, se a natureza corrompida não é um juízo positivo de Deus, a execução de um castigo pelo pecado do pai realmente não ocorre. Finalmente, quem, mesmo sem corrupção e dentro do Jardim perfeito, se comportaria melhor que Adão, quanto à obediência aos mandamentos de Deus? E, sem dúvida, a suposta "injustiça" do pecado imputado é mais que contrabalançada pelo dom gratuito da salvação em Jesus Cristo, oferecido a todos livremente .
Embora seja especulativa e não sem algumas dificuldades, uma teoria integrada que utilize a aliança parece explicar boa parte dos dados bíblicos e talvez sugira uma terceira alternativa às teorias predominantes do realismo e do federalismo.[8]
O pecado na vida do crente
O crente ainda possui a natureza pecaminosa (Sl 51; Rm 7.12-24; 1Jo 1.8). No entanto, o cristão entende que sua vida precisa ser controlada pelo Espírito Santo, para que as “obras da carne” não sejam uma realidade em sua vida (Gl 5.19-25; Rm 8.5-17). De fato, “aquele que é nascido de Deus não peca habitualmente” (1Jo 3.9 – Almeida Século 21). Essa deve ser a oração do crente: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro” (Sl 51.10).
“Embora o pecado não afete a nossa posição ou estado diante de Deus, ele afeta o nosso relacionamento com Deus, pois Deus é entristecido pelo nosso pecado.”[9] Nossas ações pecaminosas ofendem primeiramente a Deus, mas, em muitos casos, também ofendem nosso próximo, inclusive pessoas amadas por nós. O pecado tem o poder destrutivo de romper relacionamentos. Às vezes, um segundo de loucura pode minar a beleza de um relacionamento, ou ponde manchá-lo para o resto da vida, ou pode até mesmo destruí-lo.
O pecado precisa ser confessado a Deus, pois “ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e nos purificar de toda injustiça” (1Jo 1.9; cf. Mq 7.18-20). E, através do quebrantamento e arrependimento, o relacionamento com Deus pode ser restaurado (cf. Sl 32.1-5; 51).



[1] A. B. Langston, Esboço de Teologia Sistemática,
[2] Diretor Geral: William A. Santos Editor Geral: Jamierson Oliveira. ENCICLOPÉDIA ESTUDOS DE TEOLOGIA. 2013.
[3] F J. D. Douglas. F. Bruce. (editor organizador); 0 Novo dicionário da Bíblia; editores assistentes editor da edição em português Russell P. Shedd ; tradução João Bentes, — 3. ed. rev. — São Paulo : Vida Nova, 2006.
[4] A. VAN DEN BORN. Dicionário Enciclopédico da Bíblia; EDITORA VOZES LTDA. 1977.
[5] Eleanai Cabral, Doutrina do Pecado, em Teologia Sistemática Pentecostal; Antônio Gilberto, editor geral. CPAD.
[6]  Franklin Ferreira, Curso Vida Nova de Teologia Básica: teologia sistemática (São Paulo: Vida Nova,
2013)
[7] Millard J. Erickson, Teologia Sistemática (São Paulo: Vida Nova, 2015).
[8] Stanley Horton. Teologia Sistemática CPAD.
[9] Wayne Grudem, Entenda a fé cristã: um guia prático e acessível com 20 questões que todo cristão
precisa conhecer, São Paulo: Vida Nova, 2010.
A Origem e história do movimento Pentecostal
PENTECOSTALISMO TEM suas raízes no movimento pentecostal, que surgiu nos Estados Unidos no início do século XX. Os adeptos do pentecostalismo passaram a enfatizar o batismo com (ou no) Espírito Santo como revestimento de poder subsequente à conversão e ao falar em línguas estranhas. Outros dons ou manifestações sobrenaturais também passaram a fazer parte das reuniões pentecostais, como a cura física, as profecias e os dons de milagres e de discernimento.
Essas crenças e práticas baseiam-se no segundo capítulo do livro de Atos dos Apóstolos, quando os apóstolos, Maria (mãe de Jesus) e cerca de 120 discípulos, instruídos por Jesus, reuniram-se num cenáculo em Jerusalém para esperar a vinda do Espírito Santo prometida por Cristo. No quinquagésimo dia posterior à páscoa, depois de esperarem por dez dias, a promessa de Jesus cumpriu-se. Lucas descreveu assim o evento:
Ao cumprir-se o dia de pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar; de repente, veio do céu um som, como de um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam assentados. E apareceram, distribuídas entre eles, línguas, como de fogo, e pousou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem.
Quanto à origem do termo Pentecostes, o dicionário bíblico informa: Em Levítico 23:16, a Septuaginta empregou o termo pentêconta hêmeras como a tradução do hebraico hªmishshïm yom, “cinquenta dias”, referindo-se ao número de dias partindo da oferta do molho de cevada até ao início da páscoa. Ao quinquagésimo dia era a festa de pentecostes. Visto que o tempo assim escoado era de sete semanas, era chamada hagh shabhu’ôth, “festa das semanas” (Êx 34:22; Dt 16:10). Assinalava o término da colheita da cevada, que tinha início quando a foice era lançada pela primeira vez na plantação (Dt 16:9) e quando o molho era movido “no dia imediato ao sábado” (Lv 23:11,12a). É festa igualmente chamada hagh haqqãçïr, “festa da colheita”, de yôm habbikkürïm, “dia das primícias” (Êx 23:16; Nm 28:26). Essa festa não se limitava aos tempos do Pentateuco, mas sua observância é indicada nos dias de Salomão (2Cr 8:13) como o segundo dos três festivais anuais (cf. Dt 16:16).[1]
Para explicar o fenômeno ocorrido em Atos 2:12 e refutar a sugestão de que estivessem embriagados, Pedro cita a profecia de Joel 2:28-32
Ao longo da história, o pentecostalismo justifica as manifestações de glossolalia (falar em línguas) e outras relacionadas com fenômenos sobrenaturais citando uma variedade de textos bíblicos (At 2:16-21; 10:44-46; 19:6; 1Co 12:10).
O EQUÍVOCO DO MONTANISMO E DA IGREJA.
O MONTANISMO
Foi neste movimento, liderado por Montano, que os fenômenos pentecostais encontraram ampla guarida. O movimento surgiu na Frígia, Ásia Menor romana (Turquia), por volta do ano 172,[2] tendo Tertuliano como um de seus adeptos mais importantes.
Montano não tinha cargo eclesiástico e percorria os lugares acompanhado de duas mulheres, Priscila e Maximila. Por meio da voz do parácleto, manifestação profética que falava, na primeira pessoa, através das duas mulheres, promovia o que chamou “nova profecia” e conclamava as pessoas para a volta de Cristo.
Os adeptos do montanismo se consideravam porta-vozes do Espírito. Afirmavam que o fim do mundo estava próximo e que a nova Jerusalém seria brevemente estabelecida na Frígia, para onde se dirigiam os fiéis. Como preparo para a próxima consumação, passaram a pregar um asceticismo rigoroso, o celibato, jejuns e abstinência de carne. Preocupados com o avanço do movimento, os bispos da Ásia Menor se reuniram, pouco depois de 160 d.C., e condenaram o movimento.[3]
Referindo-se a Montano, Henri Desroche afirmou: “Jerônimo, com seu estilo habitualmente rude, qualificou Montano como ‘pregador do espírito imundo, [que] com ouro, corrompeu inicialmente muitas igrejas por meio de Priscila e Maximila, duas mulheres nobres e ricas, manchando-as em seguida com a heresia’”.[4]
Entretanto, alguns teólogos creem que ao excluir o montanhismo a igreja perdeu, pois um movimento que protestava contra o crescente formalismo e mundanismo na Igreja passou a funcionar na clandestinidade.
Com a condenação do montanismo, a expectativa da volta de Cristo foi, até certo ponto, reduzida e a operação dos dons espirituais perdeu considerável espaço na comunidade cristã. Ao invés de condenar a prática dos dons espirituais, a Igreja teria lucrado se a regulasse à luz das Escrituras. Todo segmento pentecostal equilibrado e preocupado em promover a sã doutrina procurará também regular e estabelecer parâmetros bíblicos para a operação dos dons espirituais. Teólogos pentecostais como Donald Gee, Gordon Fee e Stanley Horton, para mencionar alguns, têm demonstrado esse cuidado.
A CONTINUIDADE DA GLOSSOLÁLIA.
São várias as instâncias de fenômenos que historiadores pentecostais (como Allan Anderson) interpreta como predecessores do pentecostalismo.
Inácio de Antioquia 67-110 d.C. afirmou em sua carta aos filadelfienses (Inácio aos filadelfienses 7:01) que profetizou pelo Espírito: "Estando no meio de vós gritei, disse em alta voz, uma voz de Deus: 'Permanecei unidos (…)'. Aqueles suspeitaram que eu disse isso porque previa a divisão de alguns, mas aquele pelo qual estou acorrentado é minha testemunha que eu não sabia através da carne. Foi o Espírito que me anunciou, dizendo: '(…), guardai vosso corpo como templo de Deus, amai a união, fugi das divisões, sede imitadores de Jesus Cristo, como ele também é do seu Pai". [5]
Em sua carta a Policarpo, ele também declara: "Quanto as coisas invisíveis, pode que te sejam manifestadas a ti, para que nada te falte e tenhas abundância em todo dom espiritual". [6]
Policarpo de Esmirna 70-160 d.C. teve uma revelação de Deus de como morreria. "Orando, ele teve uma visão, três dias antes de o prenderem: viu seu travesseiro queimado pelo fogo. Voltando-se para seus companheiros, disse: 'Devo ser queimado vivo!'.[7]
Justino Mártir 110-165 d.C. em seu diálogo contra o judeu Trifo recorda que os dons do Espírito Santo, incluindo exorcismo, ainda estão em uso: "Recebendo uma vez o espírito de discernimento, outro um conselho, outro uma cura, outro de poder, outro de presciência, outro de ensino e outro de temor a Deus. Os dons proféticos permanecem conosco até o presente tempo. Para alguns (crerem) certamente em expulsar demônios, (…). Outros tem conhecimento daquilo que vai acontecer; eles tem visões e pronunciam expressões proféticas". [8]
Irineu de Lião 130-202 d.C.. "De igual modo nós todos ouvimos que muitos dos irmãos na igreja que têm dons proféticos, e que falam em todas as línguas por intermédio do Espírito, e que também trazem a luz os segredos dos homens para benefício dos homens, e que expôem os mistérios de Deus."[9]
Tertuliano 160-220 d.C. ao falar de Marcião, declarou o seguinte: "Para provar o que os profetas têm falado, e não pelo sentimento humano, mas pelo Espírito de Deus, como aqueles que previram o futuro e revelaram os segredos do coração, que apresentam um salmo, uma visão, uma oração, que é apenas pelo Espírito em um êxtase, ou seja, em um rapto ou num arrebatamento toda vez que uma interpretação tem ocorrido." Aparentemente Tertuliano descreveu parte da vida comum da Igreja Ortodoxa e recomendou buscar o dom do Espírito Santo de profecia.[10]
Pacômio 292-348 d.C. depois de momentos especiais podia, sob o poder do Espírito falar os idiomas grego e latim que jamais havia aprendido."
Agostinho de Hipona 354-430 d.C. mencionou: "Fazemos todavia o que os Apóstolos fizeram quando impuseram as mãos sobre os samaritanos, invocando sobre eles o Espirito Santo. Mediante a imposição de mãos esperamos que os crentes falem em novas línguas."
A partir do século XII surgem outras referências às línguas estranhas. O primeiro relato é o de Pedro Valdo, rico comerciante francês, que reúne os fiéis dispostos a lutar a favor dele, contra o luxo e a opulência do clero romanista. Nasce assim o movimento dos valdenses, caracterizados pelo desejo de um evangelismo puro e que, segundo os registros, falavam línguas desconhecidas.
A partir da Reforma Protestante, a glossolalia torna-se motivo de debate mais abrangente. No movimento dos anabatistas nem todos praticavam este carisma, uma vez que existiam divergências dessa prática entre eles. Zuinglio reconheceu a manifestação glossolálica e a interpretou como um dom dado para o crente como um sinal para os não-crentes.
Jansenitas 1640-1801 fizeram parte de um movimento agostiniano radical na Igreja Católica Romana (seu adepto mais famoso foi o cientista e apologista francês Blaise Pascal), alguns de seus adeptos em Port Royal ficaram conhecidos pelos seus sinais e prodígios, dança espiritual, curas, e elocuções proféticas. Alguns dizem que falaram em línguas estranhas e interpretaram as línguas que lhes foram endereçadas.
Serafin de Sarov 1759-1833 líder carismático da igreja ortodoxa russa, afirmou que o objetivo da vida cristã é a recepção do Espírito Santo. Serafim também é lembrado pelo dom de cura.
Os huguenotes foi o nome dado ao calvinistas da França, houve manifestações carismáticas entre eles em Cevennes, durante a perseguição determinada por Louis XIV. Em seguida, uma nota sobre os huguenotes:
Respeitando as manifestações físicas, há pouca discrepância entre os relatos de amigos e inimigos. As pessoas atingidas eram homens e mulheres, idosos e jovens. Muitos eram crianças com idades entre os nove ou dez anos. Eles emergiram do povo, disseram seus inimigos, da massa de ignorantes e sem cultura; sem poder ler e escrever, em sua maioria, e falando o jargão da província diariamente, que era a única coisa que poderia usar para falar. Tais pessoas caíam repentinamente para atrás e, permaneciam estendidas na terra, experimentavam contorções estranhas e aparentemente involuntárias; seus peitos pareciam inchar-se e seus estômagos inflar-se. Ao sair de tal condição, gradualmente voltavam a ganhar o poder da fala instantaneamente. Começavam, muitas vezes, com uma voz interrompida por soluços e logo derramavam torrentes de palavras, clamores de misericórdia, chamados ao arrependimento, exortações aos espectadores para que parassem de frequentar as missas, admoestações à igreja de Roma e profecias relativas ao juízo vindouro. Da boca de crianças emergiam textos da Escritura e discursos em um francês muito bom e fácil de entender, um [francês] que nunca usavam quando estavam conscientes. Quando o transe terminava, declaravam que não se lembravam de nada do ocorrido de que haviam dito. Em raras ocasiões recordavam impressões vagas e gerais, mas nada a mais. Não havia aparência de engano, nem indicação de que ao pronunciar suas predições com relação a eventos futuros, tivessem alguma ideia de prudência ou dúvida tocante a veracidade do que haviam predito.
Os Huguenotes
Um dos principais líderes desta igreja foi George Fox, que pregou uma mensagem sobre a nova era do Espírito Santo, ele em seu diário, diz o seguinte:
No ano de 1648, enquanto estava sentado na casa de um amigo em Notinghamshire (porque desta vez o poder de Deus tinha aberto os corações de alguns para receber a Palavra de vida e de reconciliação), vi que havia uma grande fenda que passava por toda a terra, e um grande humo iba a medida que a fenda se abria caminho; depois da fenda, ocorria uma grande terremoto. Esta era a terra que havia nos corações das pessoas, a qual tinha que ser sacudida antes que a semente de Deus fora levantada da tumba. E assim sucedia: pois o poder de Deus começou a sacudi-los e grandes ministrações de adoração eram conduzidas, de tal maneira, que poderosas obras do Todo-Poderoso eram realizadas entre os crentes para o assombro, tanto das gentes como dos sacerdotes.
George Fox
Quando os cristãos hussitas foram perseguidos na Boêmia, encontraram em Dresden, Alemanha um refúgio no qual podiam procurar a Deus. Em 1727 o conde Ludwig Graf de Zinzendorf começou a organizar aos crentes desta corrente cristã em uma única igreja. Durante o mês de julho criou reuniões e vigílias de oração com os jovens, posteriormente encontrou um livro chamado Ratio Disciplinae o qual relatava como a igreja de Irineu se unia para buscar a presença de Deus. Os morávios dizem que o Espírito desceu sobre eles, e grandes sinais e maravilhas foram realizadas entre os irmãos naqueles dias, prevalecendo uma maravilhosa graça entre si, e em todo o país."
O METODISMO
A grande contribuição para o surgimento do pentecostalismo veio, mais especificamente, do movimento metodista, fundado no século XVIII, na Inglaterra, por João Wesley (1703-1791). Seu fundador foi influenciado pelo grupo pietista alemão denominado morávios, que pregavam a necessidade do novo nascimento e da conversão.
A experiência de conversão de Wesley, em 1738, mudaria totalmente sua vida.16 Ao ouvir, numa reunião, a leitura do prefácio do comentário do livro de Romanos, escrito por Martinho Lutero, seu coração foi “estranhamente aquecido”. Essa experiência fez dele um evangelista. Wesley mesmo declarou: “Então, foi do agrado de Deus acender um fogo que, confio, nunca se apagará”.[11]
Com as perseguições religiosas na Europa, muitos adeptos desse movimento migraram para os Estados Unidos. A ênfase na perfeição cristã ou na inteira santificação, ensinadas por João Wesley, mais tarde receberia outros nomes: “segunda bênção” e “revestimento de poder”, por exemplo. O termo “batismo no Espírito Santo” passaria a ser usado por alguns grupos posteriormente.
Outros líderes e denominações na América do Norte seriam influenciados pelos mesmos ensinos e se encarregariam de disseminá-los. Entre estes destacaram-se Charles G. Finney, Dwight L. Moody, A. B. Simpson, Andrew Murray e R. A. Torrey.
As raízes históricas do pentecostalismo não passam apenas pela influência de Wesley e do pietismo, mas por vários movimentos religiosos: o puritanismo, George Fox e os quacres, os irmãos Plymouth e William Booth, fundador do Exército de Salvação. Em outras palavras, o pentecostalismo americano surgiu do aprofundamento da vida espiritual associado a João Wesley.
A Igreja Metodista se tornara tão bem-sucedida na América do Norte que perdeu muito do fervor espiritual presente no início do movimento. Em reação a esse declínio dentro do metodismo, surgiram vários grupos cristãos de orientação wesleyana, que buscavam a experiência de santificação vivida pelos primeiros metodistas. [12]Donald Dayton afirma que “a constelação dessas igrejas é o elemento mais importante que prepara o terreno para o movimento pentecostal moderno”.
A Origem do Pentecostalismo Atual[13]
Foi em Topeka, Kansas (EUA), que surgiu o movimento pentecostal como é conhecido hoje. O pregador Charles Parham começou, em 1900, uma escola bíblica denominada Betel. Parham reuniu cerca de nove alunos para que estudassem juntos e sem o auxílio de nenhum livro além da Bíblia o tema do batismo no Espírito Santo.
Parham e seus alunos tinham uma certa ligação com o “movimento da santidade”, um grupo que tentava preservar os ensinos peculiares do metodismo de João Wesley, como a perfeição cristã e a inteira santificação. O grupo liderado por Parham buscava evidências ou prova bíblica para o batismo no Espírito Santo.
Chegaram, então, à conclusão de que a única certeza e sinal escriturístico para o batismo com o Espírito Santo era o falar em línguas. No dia 1°. de janeiro de 1901, um moço estudante estava orando durante a noite, quando experimentou de repente a paz e a alegria de Cristo, começando a louvar a Deus em línguas. Dentro de alguns dias, toda a comunidade recebera o batismo com o Espírito Santo dessa maneira e surgiu o moderno movimento pentecostal. Essa experiência, acompanhada por poderosos ministérios de conversões, curas, profecias etc., se espalhou pelo Texas e (em 1906) alcançou Los Angeles, onde cresceu substancialmente, passando para Chicago, Nova York, Londres e Escandinávia em meados de 1915.
Um aluno de Parham, chamado William Seymour, foi convidado a pregar em Los Angeles. As reuniões daquele pregador negro começaram a crescer. Suas pregações atraíam muita gente, e o fenômeno do batismo no Espírito Santo continuou a acontecer em grande escala. A experiência era sempre acompanhada de manifestações de línguas, profecias e orações em voz alta, que ocorriam junto com cânticos espirituais. Seymour era filho de exescravos e, apesar do contexto social extremamente hostil aos negros, ele continuou a ensinar:
Apesar das constantes humilhações, desenvolveu uma espiritualidade que resultou, em 1906, num avivamento em Los Angeles. A maioria dos historiadores pentecostais crê ter sido esse avivamento o berço do pentecostalismo. As raízes da espiritualidade de Seymour jazem em seu passado. Ele afirmou suas raízes negras ao introduzir, na liturgia, a música negra numa época em que essa música era considerada inferior e imprópria à adoração cristã. Ao mesmo tempo, ele viveu firmemente o que compreendia ser o Pentecostes. Para ele, o Pentecostes significava mais que falar em línguas. Significava amar a despeito do ódio — vencendo o ódio de uma nação inteira ao demonstrar que o Pentecostes é algo muito diferente do estilo de vida americano de sucesso.[14]
No avivamento de 1906, em Los Angeles, bispos brancos e trabalhadores negros, homens e mulheres, asiáticos e mexicanos, professores brancos e lavadeiras negras, todos eram iguais. A imprensa religiosa e a secular acompanhava todos os detalhes. Sem conseguir entender o que se passava, preferiram ridicularizar, atacando Seymour: “pode vir algo bom de um autodenominado profeta negro?”.
As principais denominações também criticaram o emergente movimento pentecostal, desprezando seus seguidores devido à origem negra e humilde. Pressões sociais surgiram, tentando discriminar suas igrejas entre as organizações negras e brancas, como outras igrejas já vinham fazendo.
Tudo isso, porém, não conseguiu impedir o crescimento do pentecostalismo. De Los Angeles, o movimento espalhou-se por muitas cidades norte-americanas e depois pelo mundo todo. Nos Estados Unidos, Chicago desenvolveria um importante papel na exportação do fenômeno pentecostal para o Brasil. A cidade tornou-se uma rota missionária para três pregadores que lançariam as bases para o movimento pentecostal em solo brasileiro: Louis Francescon (fundador da Congregação Cristã no Brasil), Daniel Berg e Gunnar Vingren (fundadores da Assembleia de Deus).
Muitas igrejas foram formadas, sendo a Assembleia de Deus a maior delas. Mais tarde, o pentecostalismo tornou-se fator importante para a formação de outro grupo na América do Norte, que também alcançaria proporções mundiais, e que seria conhecido como “movimento carismático”. Com ênfase no batismo do Espírito Santo e na glossolalia, esse movimento passaria a existir em quase todas as denominações evangélicas tradicionais, preparando o caminho para o futuro movimento neopentecostal.
O pentecostalismo no Brasil
O pentecostalismo surgiu no Brasil em 1910, com a Congregação Cristã no Brasil, e hoje representa o maior segmento da comunidade evangélica. Até os anos 1950, os pentecostais não chamavam muito a atenção. Entretanto, sua extraordinária expansão, a crescente visibilidade nos meios de comunicação e seu envolvimento com a política fizeram do movimento objeto frequente de estudo dos pesquisadores da religião.
Maior denominação evangélica brasileira das últimas décadas, a Assembleia de Deus foi fundada por dois missionários suecos, Gunnar Vingren e Daniel Berg, que vieram ao Brasil via Estados Unidos.
Gunnar Vingren recebeu o chamado de Deus para sua vida aos nove anos de idade. Em 1896, aos dezessete anos, passou por um processo de reconversão, depois de um período afastado da fé. Em junho de 1903, ele foi atingido pelo que ele denominou “febre dos Estados Unidos”. Depois de passar por outras cidades norte-americanas, foi a Chicago estudar no seminário teológico dos batistas suecos.
No verão de 1909, sentiu um forte desejo de receber o batismo com o Espírito Santo e com fogo. Depois de cinco dias de busca, numa conferência na Primeira Igreja Batista Sueca, em Chicago, ele recebeu o que buscava. Ao pregar o batismo do Espírito Santo em sua igreja, esta ficou dividida e Vingren foi obrigado a deixar o pastorado da igreja.
Vingren foi para uma igreja em Indiana, onde foi influenciado por Adolfo Ulldin, um fiel que tinha visões, falava pelo dom de profecia e revelou vários segredos sobre o futuro de Vingren. Ele conta que foi por meio desse irmão que o Espírito Santo lhe disse para ir ao Pará, onde pregaria o evangelho para um povo muito humilde. Foi preciso ir a uma biblioteca para descobrir que o Pará fica no norte do Brasil.
Nesse momento, Vingren já havia conhecido Daniel Berg, seu futuro companheiro de missões, pois também ele recebera o chamado para vir ao Brasil, e ambos prepararam-se para a viagem.
No Brasil, foram recebidos por uma igreja batista. Assim que aprenderam um pouco da língua, começaram a evangelizar e a disseminar a doutrina pentecostal, principalmente o batismo no Espírito Santo com o falar em línguas.
A pregação de Vingren e Berg encontrou receptividade por parte de alguns e resistência por parte de outros. Entre os dezenove membros da igreja batista que creram na nova doutrina estava Celina de Albuquerque, considerada a primeira pessoa em solo brasileiro a receber a experiência pentecostal. Em junho de 1911, eles deixaram a igreja batista e fundaram uma igreja denominada Missão de Fé Apostólica.
Os assembleianos dividiram sua história em quatro períodos. O primeiro período vai de 1911 até 1924, tendo como fatos principais a aquisição do primeiro templo, a publicação do primeiro periódico pentecostal brasileiro, denominado Voz da verdade, e o início do trabalho missionário da denominação, com o envio de José de Matos a Portugal, em meados de 1913.
O segundo período vai de 1924 a 1930 e destaca o crescimento da igreja em todo o estado do Pará. Nessa época, foram instituídos o diaconato e o presbiterato na denominação. O terceiro período vai de 1930 até 1950 e destaca a colaboração da igreja do Pará com as construções de templos nas cidades de São Luís (MA), Manaus (AM), Teresina (PI) e Porto Velho (RO). O quarto e último período vai de 1950 até os dias atuais, quando acontece uma expansão ainda maior da denominação. Em 1961, o movimento pentecostal brasileiro já contava com um milhão de membros.
Por mais de quarenta anos, a Assembleia de Deus reinaram absolutas no pentecostalismo brasileiro, sem se preocupar com a “concorrência”. O que caracterizou essa fase do movimento, denominada primeira onda, foi a oração em línguas.
Somente a partir de 1950, um segundo grupo de igrejas pentecostais surgiria no Brasil, com ênfase na cura divina, sem, porém, desprezar o orar em línguas.
O pentecostalismo no Brasil.
O pentecostalismo entrou cedo na América Latina (Chile, 1909; Brasil, 1910). Inicialmente cresceu pouco, mas a partir dos anos 50 o crescimento se intensificou, especialmente nesses dois países. A partir dos anos 70, expandiu-se na América Central (especialmente na Guatemala e El Salvador, onde representa respectivamente 30% e 20% da população). No Chile, 75 a 80% dos protestantes são pentecostais. Nesse país, o pentecostalismo marcou a nacionalização do protestantismo.
O sociólogo Paul Freston fala de “três ondas” ou fases de implantação do pentecostalismo no Brasil. A primeira onda, ainda no início do movimento pentecostal americano, trouxe para o Brasil duas igrejas: a Congregação Cristã no Brasil (1910) e as Assembleias de Deus (1911). Essas igrejas dominaram o campo pentecostal durante quarenta anos. A AD foi a que mais se expandiu numérica e geograficamente. A CCB, após um período em que ficou limitada à comunidade italiana, sentiu a necessidade de assegurar a sua sobrevivência por meio do trabalho entre os brasileiros.[15]
A segunda onda pentecostal ocorreu na década de 50 e início dos anos 60, quando o campo pentecostal se fragmentou e surgiram, entre muitos outros, três grandes grupos ainda ligados ao pentecostalismo clássico: Igreja do Evangelho Quadrangular (1951), Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo (1955) e Igreja Pentecostal Deus é Amor (1962), todas voltadas de modo especial para a cura divina. Essa segunda onda coincidiu com o aumento do processo de urbanização do país e o crescimento acelerado das grandes cidades. Freston argumenta que o estopim foi a chegada da Igreja Quadrangular com seus métodos arrojados, forjados no berço dos modernos meios de comunicação de massa, a Califórnia.
A terceira onda histórica do pentecostalismo brasileiro começou no final dos anos 70 e ganhou força na década de 80, com o surgimento das igrejas denominadas neopentecostais, com sua forte ênfase na “teologia da prosperidade”. Sua representante máxima é a Igreja Universal do Reino de Deus (1977), mas existem outros grupos significativos como a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980), Comunidades Evangélicas, Igreja Renascer em Cristo, Comunidade Sara Nossa Terra, Paz e Vida, etc. Assim como a ênfase da primeira onda foi o batismo com o Espírito Santo e ao consequente falar em línguas; a da segunda onda foi a cura e a da terceira, o exorcismo.[16]
Uma importante precursora dos grupos neopentecostais foi a Igreja de Nova Vida, fundada pelo canadense Robert McAllister, que rompeu com a Assembleia de Deus em 1960. Essa igreja foi pioneira de um pentecostalismo de classe média, menos legalista, e investiu muito na mídia. Foi também a primeira igreja pentecostal a adotar o episcopado no Brasil. Sua maior contribuição foi treinar futuros líderes como Edir Macedo e seu cunhado Romildo R. Soares.
Outros grupos pentecostais e neopentecostais brasileiros resultaram da chamada “renovação carismática”. Esse movimento surgiu nos Estados Unidos no início dos anos 60, com a ocorrência de fenômenos pentecostais nas igrejas protestantes históricas e também na igreja católica. No Brasil, a “renovação” produziu divisões em quase todas as denominações tradicionais, com o surgimento de grupos como a Igreja Batista Nacional, a Igreja Metodista Wesleyana e a Igreja Presbiteriana Renovada.



[1] J. D. DOUGLAS, O novo dicionário da Bíblia
[2] Walter A. ELWELL. Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã
[3] Williston WALKER, História da igreja cristã.
[4] Dicionário de messianismos e milenarismos
[5] Padres Apostólicos, São Paulo: Paulus, 1995
[6] Padres Apostólicos, São Paulo: Paulus, 1995
[7] Padres Apostólicos, São Paulo: Paulus, 1995
[8] Padres Apostólicos, São Paulo: Paulus, 1995
[9] Eusébio de Cesareia, História Eclesiática, Livro 5, Capítulo 7. 1° Ed. - Rio de Janeiro: CPAD, 1999
[10] Eusébio de Cesareia, História Eclesiática, Livro 5, Capítulo 7. 1° Ed. - Rio de Janeiro: CPAD, 1999
[11] J. D. DOUGLAS, The new internacional dictionary of the christian church
[12] William W. MENZIES e P. ROBERT, Spirit and power: Foundations of pentecostal experience,
[13] Miguel ALBANEZ, Introdução à história do movimento pentecostal no Brasil
[14] Walter J. HOLLENWEGER, Pentecostalism — Origins and developments worldwide.
[15] FRESTON, Paul. Breve história do pentecostalismo brasileiro. Em: ANTONIAZZI, Albertol. Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994
[16] FRESTON, Paul. Breve história do pentecostalismo brasileiro. Em: ANTONIAZZI, Albertol. Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994