quinta-feira, 18 de março de 2021

PENSANDO ESCATOLOGICAMENTE SOB UM OLHAR SECULAR

 

Quanto mais tempo a parusia, numa perspectiva não cristã, veio a falhar e o fim do mundo sendo removido para uma distância indefinida, quanto mais tempo a Igreja teve uma história neste mundo, mais o interesse pela história se desenvolveu, e dar-se início de se confundir e mesclar escatologia e história da igreja, precursores das dispensações.

Então, a descrição das heresias e do destino dos judeus deve demonstrar a independência e pureza da Igreja e sua superioridade deve ser provada pela descrição das perseguições e martírios. Em sua crônica Eusébio já havia colocado a história da Igreja no quadro da história mundial. Nisto ele tinha predecessores de cujas obras apenas fragmentos foram preservados. Teófilo de Antioquia deve ser considerado o mais antigo (no último terço do segundo século). Ele escreveu sobre o início da história humana. Em 221 DC Júlio Africano compôs uma Crônica do Mundo começando com sua criação. Ele datou a encarnação de Cristo no ano 5500 e esperava seu retorno em 500 DC no final de todo o ano mundial de 6000 anos. Hipólito de Roma (nascido por volta de 160/70 DC) compôs uma crônica que começou com a criação do mundo e se estendeu até 234 DC. Ele calculou que dos 6000 anos desde o início até o fim do mundo, 5738 anos já se passaram e, portanto, o último dia deve ser esperado em 262 anos. Todas essas crônicas usam o material da tradição bíblica. Julius Africanus também faz uso de cálculos de tempo grego. Mas a base de todas essas cronologias é o esquema apocalíptico de Daniel. Apenas Eusébio abandonou esse cálculo apocalíptico e começa sua história com Abraão porque somente a partir do tempo de Abraão pode ser dada uma cronologia confiável.

Com esta história mundial em sentido estrito surge pela primeira vez. Para os antigos historiadores para quem a Grécia ou Roma eram o ponto de orientação, ainda era desconhecido. É sintomático que agora tenha surgido uma cronologia que abrangia toda a história, enquanto os gregos datavam os acontecimentos de acordo com as Olimpíadas, e os romanos de acordo com os cônsules. Para a nova cronologia cristã, o nascimento de Cristo é o centro da história a partir do qual o tempo é contado para trás e para a frente. Toda a história do mundo está dividida em duas partes, e dentro delas está estruturada em épocas. É claro que o esquema do cálculo apocalíptico opera nisso, mas agora é assumido por um interesse científico.

O tempo antes de Cristo era agora entendido como um tempo de preparação para o aparecimento de Cristo e da Igreja um tempo sob a providência divina. Deus enviou seu Filho no momento em que o tempo foi preparado tanto pela religião do Antigo Testamento quanto pela filosofia grega. E uma pré-condição para a vinda de Cristo e a propagação do Evangelho era o império de Augusto com sua 'Pax Romana'.

Todo o curso da história agora tem um significado. É claro que a concepção de um plano divino na história se originou no Antigo Testamento, nos escritos apocalípticos e na teologia de Paulo. Mas agora existe uma diferença decisiva. No Antigo Testamento, cada evento tem um significado porque significa bênção ou castigo divino e todo o processo da história tem seu significado como educação do povo. Mas não se pode falar do curso da história como uma unidade orgânica. Isso vale também para a visão apocalíptica, pois embora o apocalíptico considere o processo histórico como uma unidade, não o vê como uma unidade de desenvolvimento histórico.

Certamente, mesmo para os historiadores cristãos, não podemos falar de um significado imanente ao processo da história. O significado é imposto à história pela providência divina. Mas, na verdade, os historiadores agora acreditam que podem saber o significado das ações e eventos históricos dentro do processo histórico que é entendido como uma unidade orgânica. E eles estão convencidos de que o estudo histórico científico pode detectar o significado em cada caso. Surge uma visão ideológica da história, que requer apenas a secularização do conceito de providência para que o sentido da história seja pensado como imanente.

Essa visão teleológica da história é algo novo e com ela está conectada uma nova compreensão do tempo. O tempo e a história eram entendidos pelos Antigos por analogia com o processo da natureza. O processo histórico corre no círculo eterno do tempo como o processo natural no qual os mesmos fenômenos sempre retornam. É com essa visão que Agostinho entra em disputa principalmente com base na crença na criação. Segundo ele, o tempo e a história não são um movimento cíclico eterno; o tempo tem um começo, pois é criado por Deus e tem um fim que Deus lhe deu.

A Escatologia cristã cria e rompe com sistemas, cria a linearidade do tempo, e exclui a cíclica história da humanidade, também com isto retira as forças divinas, pois eram elas o que concluía e reiniciava a história, agora em Deus e principalmente em Jesus a história passa a ter uma construção linear, a escatologia cristã causou este alvoroço social, que perdura até hoje no mundo ocidental.

A compreensão cristã do homem é a razão decisiva para essa visão. Agostinho o tirou de Paulo e o desdobra principalmente em oposição à antiga maneira de pensar. Para o pensamento antigo, o homem é um membro orgânico do cosmos, enquanto para Agostinho o homem deve ser distinguido em princípio do mundo. A alma humana, o Ego humano, é agora descoberta em um sentido desconhecido para os Antigos.

O homem, como ser distinto do mundo, visa o futuro e se esforça por algo último. Ele é uma individualidade uma pessoa livre. O problema do livre arbítrio desconhecido para os antigos agora aparece pela primeira vez na discussão filosófica. Na sua própria vontade o homem tem a possibilidade de se opor à boa vontade de Deus. Ele é livre em suas decisões para o bem e para o mal e com isso ele tem sua própria história. 'Desse modo, cada ação, cada ato de vontade ou sentimento adquiriu uma importância que antes não havia sido pensada.'

É claro que o evento decisivo final é o aparecimento de Cristo. Nada é comparável com ele, mas depois dele a questão na história é a aceitação ou a recusa da fé cristã, assim como a vida do indivíduo avança por meio de decisões, o mesmo ocorre com o processo da história. A história começa com a queda de Adão, que afirmava ser independente de Deus. E desde o tempo de Caim que matou seu irmão e que fundou os impérios terrestres, a história é a luta entre a 'Civitas terrena' e a 'Civitas Dei' entre a incredulidade e a fé. A luta não terminará até a consumação.

Certamente, Agostinho não pensa nessa luta como um desenvolvimento histórico que se move com necessidade histórica para o objetivo da vitória da 'Civitas Dei'. Ele não pensa na 'Civitas Dei' como um fator da história mundial como idêntica à Igreja constitucional visível, mas como uma entidade transcendente invisível, uma entidade do além à qual o homem pertence por renascimento.

A historiografia medieval também retém a concepção do objetivo escatológico da história e, por isso, divide o processo histórico em épocas. Joaquim de Fiore (1131-1202) divide-o em três épocas de acordo com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O conhecimento do historiador, portanto, abrange não apenas o passado, mas também o futuro. Segundo Joaquim de Fiore, a última época do Espírito Santo começará no ano de 1260 e durará até a volta de Cristo.

Mas é na historiografia da Renascença que irá promover o processo de secularização apenas indiretamente, na medida em que adota uma compreensão profana da história após o exemplo dos Antigos. De acordo com isso, é o homem e não Deus quem dá início ao processo histórico. A tradição apocalíptica com seu esquema dos quatro impérios mundiais de Daniel é abandonada e a ideia do fim escatológico da história é abandonada. Em geral, a crítica da tradição cristã entendida como lendária, é o principal interesse dos historiadores da Renascença, mas nenhum novo entendimento da essência da história surgiu.

Em 1725 e 1730 apareceu a 'Scienza nuova' (Nova Ciência) de Giovanni Battista Vico. Nesta obra, a teleologia teológica da história é transformada de maneira decisiva. Ele chama sua nova 'ciência' de teologia racional da providência divina e está convencido de que a providência funciona como lumen naturale (luz natural) ou sensus communis(senso comum). O curso da história tem sua própria necessidade interior dada por Deus; portanto, Deus não precisa interferir nisso. É precisamente nas decisões históricas e nas ações livres dos homens que a história obedece a essa necessidade interior. Aqui também aparece o pensamento secularizado por Hegel com sua concepção da 'Astúcia da Razão'. O mundo 'saiu de uma mente' muitas vezes diversa, às vezes bastante contrária e sempre superior 'aos fins particulares que os homens se propuseram'. 'Na história, os homens não sabem o que desejam, pois algo diferente de sua vontade egoísta é desejado com eles.'

O caráter geral do Iluminismo é a secularização de toda a vida e pensamento humano. A ideia de teleologia, entretanto, permanece e com ela a questão sobre o significado na história. O curso da história é entendido como o progresso da era negra da Idade Média para o pensamento esclarecido ou o que significa a mesma coisa da religião como superstição para a ciência. Nesta visão, a história real começa pela primeira vez com o pensamento científico e, portanto, o interesse pela história não é direcionado ao tempo pré-científico e o pensamento científico não é entendido como surgindo de um tempo anterior, mas parece, por assim dizer, um milagre. A ideia de um desenvolvimento histórico real não é, portanto, concebida - ou apenas na medida em que a era da ciência é ao mesmo tempo a era da erudição e da civilização. A esse respeito, há um progresso que deve levar a um estado utópico de perfeição - o estado de iluminação universal sob o domínio da razão. Nessa medida, a ideia de perfeição escatológica é mantida em uma forma secularizada.

Mas foi com Kant que ao preserva a ideia de história mundial como um processo teleológico. Pois, de acordo com ele, a história deve ser entendida da mesma maneira que a natureza como um desdobramento de acordo com um plano. O objetivo desse processo é a realização do ser humano como racional e moral. Essa compreensão ocorrerá não apenas para o indivíduo, mas também para a humanidade.

Segundo ele, é o Mal que movimenta o processo histórico. A conversão do homem à fé cristã é a inversão de seus motivos. Para que isso aconteça, ele requer poder divino, porque do contrário ele seria lançado no medo e no desespero diante da majestade da lei moral. Deve-se dizer que a visão de Kant da história é uma secularização moralista da teleologia cristã da história e sua escatologia.

Por sua prontidão para compreender o processo histórico como um processo lógico e necessário ou como a autorrealização do Absoluto é perfeitamente desenvolvida por Hegel. A secularização da fé cristã é realizada por ele de forma consciente e consistente. A história da salvação é projetada no nível da história mundial. Hegel pensa que desta forma a verdade da fé cristã pode ser definitivamente validada. A filosofia deve trazer para a pureza do pensamento puro o que a religião expressa na forma de imagens. Hegel preserva a ideia cristã da unidade da história mundial, mas abandona a ideia da providência como inadequada para o pensamento filosófico. O plano divino que dá à história sua unidade deve ser entendido como a 'Mente absoluta' ('Geist'). Esta 'Mente absoluta' realiza-se na história de acordo com a lei da dialética, nomeadamente através da oposição de tese e antítese que procuram a unificação em síntese.

Para Karl Marx cada sociedade governante já contém as forças que devem superá-la ou desenvolvê-las. Isso é verdade, no entender dele, para a atual sociedade capitalista, dentro da qual a oposição entre burguesia e proletariado se tornou tão grande que uma revolução deve acontecer. O próprio desenvolvimento do capitalismo dissolveu os laços da velha tradição e invalidou todas as relações patriarcais e humanas. O proletariado é o portador do futuro. Sua ditadura levará de uma época de necessidade para o reino da liberdade para o Reino de Deus sem Deus. Então, todas as oposições de classes, todas as diferenças entre opressores e oprimidos, desaparecerão. O 'Manifesto Comunista' de 1848 é uma mensagem messiânica - como bem se disse, uma escatologia secularizada.

No marxismo a teleologia cristã da história e sua escatologia são completamente secularizadas na perspectiva do materialismo histórico. Pode-se mesmo dizer que a visão cristã da história como a luta entre o Bem e o Mal é secularizada na medida em que a oposição econômica entre opressores e oprimidos entre exploradores e explorados dá origem ao movimento histórico. A exploração é o pecado original.

Percorremos um longo caminho através dos séculos e vimos como a visão cristã da história se secularizou. Os pontos principais são os seguintes:

(1) A ideia da unidade da história é mantida, pelo menos em geral.

(2) Da mesma forma, a ideia do curso teleológico da história é mantida, mas o conceito de providência é substituído pela ideia de progresso promovido pela ciência.

(3) A ideia de perfeição escatológica é transformada na do bem-estar sempre crescente da humanidade.

Mas essa fé otimista no progresso está ameaçada e os fatos que a destruirão já estão às portas.

Rudolf Bultmann, History and Eschatology.

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