A Doutrina Reformada da Autoridade Suprema das Escrituras
A doutrina da Autoridade das
Escrituras foi de fundamental importância na Reforma Protestante do Século XVI.
Em contraposição, por um lado, à doutrina católica romana de uma tradição teológica
patrística, os Reformadores defenderam a doutrina da autoridade suprema das
Escrituras. Essa foi, portanto, a sua resposta à autoridade da tradição eclesiástica
e do misticismo pessoal.
A autoridade suprema das
Escrituras também é uma doutrina puritano. A ela os puritanos tiveram que
apelar freqüentemente na luta que foram obrigados a travar contra as imposições
litúrgicas da Igreja Anglicana.
I. Definição
O que queriam dizer os Reformadores
ao professarem a doutrina da autoridade das Escrituras? Que, por serem
divinamente inspiradas, elas são verídicas em todas as suas afirmativas.
Segundo esta doutrina, as Escrituras são a fonte infalível de informação que
estabelece definitivamente qualquer assunto nelas tratado: a única regra
infalível de fé e de prática, o supremo tribunal de recursos ao qual a Igreja
pode apelar para a resolução de qualquer controvérsia religiosa.
Isto não significa que as
Escrituras sejam o único instrumento de revelação divina. Os atributos de Deus
se revelam por meio da criação: a revelação natural (cf. Sl 19:1-4 e Rm
1:18-20). Uma versão da sua lei moral foi registrada em nosso coração: a
consciência (cf. Rm 2:14-15), "uma espiã de Deus em nosso peito,"
"uma embaixadora de Deus em nossa alma," como os puritanos costumavam
chamá-la.
A
própria pessoa de Deus, o ser de Deus, revela-se de modo especialíssimo no
Verbo encarnado, a segunda pessoa da Trindade (cf. Jo 14.19; Cl 1.15 e 3.9).
Mas, visto que Cristo nos fala
agora pelo seu Espírito por meio das Escrituras, e que as revelações da criação
e da consciência não são nem perfeitas e nem suficientes por causa da queda,
que corrompeu tanto uma como outra, a palavra final, suficiente e autoritativa
de Deus para esta dispensação são as Escrituras Sagradas.
II. Base Bíblica
A base bíblica da doutrina
reformada da autoridade suprema das Escrituras é tanto inferencial como direta.
A. Base Inferencial
É inferencial, porque decorre do
ensino bíblico a respeito da inspiração divina das Escrituras. Visto que as
Escrituras não são produto da mera inquirição espiritual dos seus autores (cf.
2 Pe 1.20), mas da ação sobrenatural do Espírito Santo (cf. 2 Tm 3.16 e 2 Pe
1.21), infere-se que são autoritativas. Na linguagem da Confissão de Fé, a
autoridade das Escrituras procede da sua autoria divina: "porque é a
Palavra de Deus."
Isto não significa que cada
palavra foi ditada pelo Espírito Santo, de modo a anular a mente e a
personalidade daqueles que a escreveram. Os autores bíblicos não escreveram
mecanicamente. As Escrituras não foram psicografadas, ou melhor,
"pneumografadas." Os diversos livros que compõem o cânon revelam
claramente as características culturais, intelectuais, estilísticas e
circunstanciais dos diversos autores. Paulo não escreve como João ou Pedro.
Lucas fez uso de pesquisas para escrever o seu Evangelho e o livro de Atos.
Cada autor escreveu na sua própria língua: hebraico, aramaico e grego. Os
autores bíblicos, embora secundários, não foram instrumentos passivos nas mãos
de Deus. A superintendência do Espírito não eliminou de modo algum as suas
características e peculiaridades individuais. Por outro lado, a agência humana
também em nada prejudicou a revelação divina. Seus autores humanos foram de tal
modo dirigidos e supervisionados pelo Espírito Santo que tudo o que foi
registrado por eles nas Escrituras constitui-se em revelação infalível, inerrante
e autoritativa de Deus. Não somente as idéias gerais ou fatos revelados foram
registrados, mas as próprias palavras empregadas foram escolhidas pelo Espírito
Santo, pela livre instrumentalidade dos escritores.
O fato é que, por procederem de
Deus, as Escrituras reivindicam atributos divinos: são perfeitas, fiéis, retas,
puras, duram para sempre, verdadeiras, justas (Sl 19.7-9) e santas (2 Tm 3.15).
B. Base Direta
Mas a doutrina reformada da
autoridade das Escrituras não se fundamenta apenas em inferências. Diversos
textos bíblicos reivindicam autoridade suprema.
Os profetas do Antigo Testamento
reivindicam falar palavras de Deus, introduzindo suas profecias com as assim
chamadas fórmulas proféticas, dizendo: "assim diz o Senhor,"
"ouvi a palavra do Senhor," ou "palavra que veio da parte do Senhor."
No Novo Testamento, vários textos do Antigo
Testamento são citados, sendo atribuídos a Deus ou ao Espírito Santo. Por
exemplo: "Assim diz o Espírito Santo..." (Hb 3:7ss).
A autoridade apostólica também
evidencia a autoridade suprema das Escrituras. O Apóstolo Paulo dava graças a
Deus pelo fato de os tessalonicenses terem recebido as suas palavras "não
como palavra de homens, e, sim, como em verdade é, a palavra de Deus, a qual,
com efeito, está operando eficazmente em vós, os que credes" (1 Ts 2:13).
Que autoridade teria Paulo para exortar aos gálatas no sentido de rejeitarem
qualquer evangelho que fosse além do evangelho que ele lhes havia anunciado,
ainda que viesse a ser pregado por anjos? Só há uma resposta razoável: ele
sabia que o evangelho por ele anunciado não era segundo o homem; porque não o
havia aprendido de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo (Gl
1:8-12).
Jesus também atesta a autoridade
suprema das Escrituras: pelo modo como a usa, para estabelecer qualquer
controvérsia: "está escrito" (exemplos: Mt 4:4,6,7,10; etc.), e ao afirmar
explicitamente a autoridade das mesmas, dizendo em João 10:35 que "a
Escritura não pode falhar."
III. Usurpações da Autoridade das
Escrituras
Apesar da sólida base
bíblico-teológica em favor da doutrina reformada da autoridade suprema das
Escrituras, hoje, como no passado, deparamo-nos com a mesma tendência geral de
diminuir a autoridade das Escrituras. E isso ocorre de duas maneiras: por um
lado, há a propensão em admitir fontes adicionais ou suplementares de
autoridade, que tendem a usurpar a autoridade da Palavra de Deus. Por outro
lado, há a tendência de limitar a autoridade das Escrituras, negando-a,
subjetivando-a ou reduzindo o seu escopo.
Com relação à primeira dessas
tendências, pelo menos três fontes suplementares usurpadoras da autoridade das
Escrituras podem ser identificadas: a tradição (degenerada em tradicionalismo),
a emoção (degenerada em emocionalismo) e a razão (degenerada no racionalismo).
Sempre que um desses elementos é indevidamente enfatizado, a autoridade das Escrituras
é questionada, diminuída ou mesmo suplantada.
A. A Tradição Degenerada em
Tradicionalismo
Este foi um dos grandes problemas
enfrentados pelo Senhor Jesus. A religião judaica havia se tornado
incrivelmente tradicionalista. Havendo cessado a revelação, os judeus, já no segundo
século antes de Cristo, produziram uma infinidade de tradições ou
interpretações da Lei, conhecidas como Mishnah. Essas tradições foram
cuidadosamente guardadas pelos escribas e fariseus por séculos, até serem
registradas nos séculos IV e V A.D., passando a ser conhecidas como o Talmude, a interpretação judaica oficial do Antigo
Testamento até o dia de hoje. Muitas dessas tradições judaicas eram,
entretanto, distorções do ensino do Antigo Testamento. Mas tornaram-se tão autoritativo,
que suplantaram a autoridade do Antigo Testamento. Jesus acusou severamente os
escribas e fariseus da sua época, dizendo:
Em vão me
adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens. Negligenciando o
mandamento de Deus, guardais a tradição dos homens. E disse-lhes ainda:
Jeitosamente rejeitais o preceito de Deus para guardardes a vossa própria
tradição... invalidando a palavra de Deus pela vossa própria tradição que vós
mesmos transmitistes... (Mc 7.7-9,13).
O Apóstolo Paulo também denunciou
essa tendência. Escrevendo aos colossenses, ele advertiu:
Cuidado que
ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a
tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo...
Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis
no mundo, vos sujeitais a ordenanças: Não manuseies isto, não proves aquilo,
não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? (Cl
2.8,20-22).
Quinze séculos depois, os
Reformadores se depararam com o mesmo problema: as tradições contidas nos
livros apócrifos e pseudoepígrafos, nos escritos dos pais da igreja, nas decisões
conciliares e nas bulas papais também degeneraram em tradicionalismo. As tradições
eclesiásticas adquiriram autoridade que não possuíam, usurpando a autoridade
bíblica. É neste contexto que se deve entender a doutrina reformada da
autoridade das Escrituras. Trata-se, primordialmente, de uma reação à posição
da Igreja Católica.
Isto não significa, entretanto,
que a tradição eclesiástica seja necessariamente ruim. Se a tradição reflete,
de fato, o ensino bíblico, ou está de acordo com ele, não sendo considerada
normativa (autoritativa) a não ser que reflita realmente o ensino bíblico,
então não é má. Os próprios Reformadores produziram, registraram e empregaram
confissões de fé e catecismos (os quais também são tradições eclesiásticas).
Para eles, contudo, esses símbolos de fé não têm autoridade própria, só sendo
normativos na medida em que refletem fielmente a autoridade das Escrituras.
O problema, portanto, não está na
tradição, mas na sua degeneração, no tradicionalismo, que atribui à tradição
autoridade inerente. O tradicionalismo atribui autoridade às tradições, pelo
simples fato de serem antigas ou geralmente observadas, e não por serem
bíblicas. Essa tendência acaba sempre usurpando a autoridade das Escrituras.
B. A Emoção Degenerada em
Emocionalismo
Outra fonte de autoridade que
sempre ameaça a autoridade das Escrituras é a emoção, quando degenerada em
emocionalismo. Isto quase inevitavelmente conduz ao misticismo. Na esfera
religiosa, freqüentemente é dado um valor exagerado à intuição, ao sentimento,
ao convencimento subjetivo.
Não é que Deus não tenha se
revelado por esses meios. Ele de fato o fez, e faz . Foi, em parte, através
desses meios que a revelação especial foi comunicada à Igreja e registrados no
cânon pelo processo de inspiração. O que se está afirmando é substituição destes
mecanismos pelas Escrituras, para reivindicar autoridade que na verdade não é
divina em sua substituição, tornando-a mais humana (quando não diabólica). Essa
tendência não é de modo algum nova. Eis as palavras do Senhor através do profeta
Jeremias:
Assim diz o
Senhor dos Exércitos: Não deis ouvido às palavras dos profetas que entre vós
profetizam, e vos enchem de vãs esperanças; falam as visões do seu coração, não
o que vem da boca do Senhor... Até quando sucederá isso no coração dos profetas
que proclamam mentiras, que proclamam só o engano do próprio coração?... O
profeta que tem sonho conte-o como apenas sonho; mas aquele em quem está a minha
palavra, fale a minha palavra com verdade. Que tem a palha com o trigo? diz o
Senhor (Jr 23.16,26,28).
Séculos depois o Apóstolo Paulo
enfrentou o mesmo problema. Ele próprio foi instrumento de revelações
espirituais verdadeiras, inspirado que foi para escrever suas cartas canônicas.
Nessa condição, ele sabia muito bem o que eram sonhos, visões, revelações e
arrebatamentos. Mas, ainda assim, advertiu aos colossenses, dizendo:
"Ninguém se faça árbitro contra vós outros, pretextando humildade e culto
dos anjos, baseando-se em visões, enfatuado sem motivo algum na sua mente
carnal" (Cl 2:18). Tanto Jesus como os apóstolos advertem a Igreja
repetidamente contra os falsos profetas, os quais ensinam como se fossem
apóstolos de Cristo, mas que não passam de enganadores.
Pois bem, sempre que tal coisa
ocorre, a autoridade das Escrituras é ameaçada. O misticismo, como degeneração
das emoções (não se pode esquecer que também as emoções foram corrompidas pelo
pecado) tende sempre a usurpar, a competir com a autoridade das Escrituras,
chegando mesmo frequentemente a suplantá-la. Na época dos Reformadores não foi
diferente. Eles combateram grupos místicos por eles chamados de entusiastas que
reivindicavam autoridade espiritual interior, luz interior, revelações
espirituais adicionais que suplantavam ou mesmo negavam a autoridade das
Escrituras. Esta tem sido igualmente uma das características mais comuns das
seitas modernas. Entre os movimentos pentecostais também não é incomum a emoção degenerar em
emocionalismo, produzindo um misticismo usurpador da autoridade das Escrituras,
os dons são doutrináveis segundo as Escrituras, e as manifestações sujeita a crível
pelas também Escrituras.
C. A Razão Degenerada em Racionalismo
A ênfase exagerada na razão
também tende a usurpar a autoridade das Escrituras. O homem, devido a sua
natureza pecaminosa, sempre tem resistido a submeter sua razão à autoridade da
Palavra de Deus. A tendência é sempre tê-la (a razão) como fonte suprema de
autoridade. Isto foi conseqüência da queda. Na verdade, foi também a causa,
tanto da queda
de Satanás como de nossos
primeiros pais. Ambos caíram por darem mais crédito às suas conclusões do que à
palavra de Deus. Desde então, essa soberba mental, essa altivez intelectual tem
tendido sempre a minar a autoridade da Palavra de Deus, oral (antes de ser registrada)
ou escrita.
Por que o ser humano, tendo
conhecimento de Deus, não o glorifica como Deus nem lhe é grato? O Apóstolo
Paulo explica: porque, suprimindo a verdade de Deus (Rm 1:18), "...se
tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração
insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos... pois eles mudaram a
verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura, em lugar do
Criador...’’ (Rm 1:21-22,25).
Esta tem sido, sem dúvida, a
causa de uma infinidade de heresias e erros surgidos no curso da história da
Igreja. A heresia de Marcião, o gnosticismo, o arianismo, o docetismo, o unitarianismo,
são todos erros provocados pela dificuldade do homem em submeter sua razão à
revelação bíblica. Todos preferiram uma explicação racional, lógica, em lugar
da explicação bíblica que lhes parecia inaceitável. Assim, Marcião concebeu
dois deuses, um do Antigo e outro do Novo Testamento. Por isso, também o
gnosticismo fez distinção moral entre matéria e espírito. Já o arianismo
originou-se da dificuldade de Ario em aceitar a eternidade de Cristo. Do mesmo
modo, o docetismo surgiu da dificuldade de alguns em admitir um Cristo
verdadeiramente divino-humano. O unitarianismo, por sua vez, decorre da recusa
em aceitar a doutrina bíblica da Trindade.
A tendência da razão em usurpar a
autoridade das Escrituras tem sido especialmente forte nos últimos dois
séculos. O desenvolvimento científico e tecnológico instigou a soberba
intelectual do homem. Assim, passou-se a acreditar apenas no que possa ser
constatado, comprovado, pela razão e pela lógica. A ciência tornou-se a autoridade
suprema, a única regra de fé e prática. E a Igreja passou a fazer concessões e
mais concessões, na tentativa de harmonizar as Escrituras com a razão e com a
ciência. O relato bíblico da criação foi desacreditado pela teoria da evolução;
os milagres relatados nas Escrituras foram rejeitados como mitos; e muitos
estudiosos das Escrituras passaram a assumir uma postura crítica, não mais
submissa aos seus ensinos. Foi assim que surgiu o método de interpretação
histórico-crítico em substituição ao método histórico-gramatical. Nele, é a
suprema razão humana que determina o que é escriturístico ou mera tradição
posterior, o que é milagre ou mito, o que é verdadeiro ou falso nas Escrituras.
Mas antes de se atribuir tanta
autoridade à ciência, convém considerar a sua história. Quão falível e mutável
é! A grande maioria dos "fatos" científicos de dois séculos atrás já
foram rejeitados pela própria ciência. Além disso, com que freqüência meras
teorias e hipóteses científicas são tomadas como fatos científicos comprovados!
IV. Limitações da Autoridade das
Escrituras
Além das tendências que acabei de
considerar, propensas a usurpar a autoridade das Escrituras, existem outras,
que tendem a limitar a autoridade bíblica, negando-a, subjetivando-a ou
reduzindo o seu escopo. É o que têm feito a teologia liberal, a neo-ortodoxia e
o neo-evangelicalismo, com relação a três dos principais aspectos da doutrina
da autoridade das Escrituras. Estas três concepções de "autoridade"
bíblica precisam ser entendidas. Elas estão sendo bastante divulgadas em nossos
dias, e são, em certo sentido, até mais perigosas do que as tendências
anteriormente mencionadas, por serem mais sutis. Este assunto pode ser melhor
entendido considerando-se os três principais aspectos da doutrina da autoridade
das Escrituras: sua origem (ou base), certeza (ou convicção) e escopo (ou
abrangência).
A. Origem ou Base da Autoridade
das Escrituras
A origem ou base da autoridade
das Escrituras, como já foi mencionado, encontra-se na sua autoria divina. As
Escrituras são autoritativas porque são de origem divina: o Espírito Santo é o
seu autor primário. Para os Reformadores, as Escrituras são autoritativas
porque são a Palavra de Deus inspirada. Por isso são infalíveis, inerrantes,
claras, suficientes, etc.
A teologia liberal (racionalista)
nega a própria base da autoridade da Escritura, negando a sua origem divina.
Para ela, as Escrituras são mero produto do espírito humano, expressando
verdades divinas conforme discernidas pelos seus autores, bem como erros e
falhas características do homem. Sua autoridade, portanto, não é divina nem
inerente, mas humana, devendo ser determinada pelo julgamento da razão crítica.
Eis o que afirmam: "A verdade divina não é encontrada em um livro antigo,
mas na obra contínua do Espírito na comunidade, conforme discernida pelo
julgamento crítico racional." De
acordo com a teologia liberal, "nós estamos em uma nova situação
histórica, com uma nova consciência da nossa autonomia e responsabilidade para
repensar as coisas por nós mesmos. Não podemos mais apelar à inquestionável
autoridade de um livro inspirado.”
B. Certeza da Autoridade das Escrituras
A certeza ou convicção da
autoridade das Escrituras provém do testemunho interno do Espírito Santo. A
excelência do seu conteúdo, a eficácia da sua doutrina e a sua extraordinária
unidade são algumas das características das Escrituras que demonstram a sua
autoridade divina. Contudo, admitimos que "a nossa plena persuasão e
certeza da sua infalível verdade e divina autoridade provém da operação interna
do Espírito Santo, que pela Palavra e com a Palavra, testifica em nossos
corações."
O testemunho da Igreja com
relação à excelência das Escrituras pode se constituir no meio pelo qual somos
persuadidos da sua autoridade, mas não na base ou fundamento da nossa
persuasão. A nossa persuasão da autoridade da Bíblia dá-se por meio do
testemunho interno do Espírito Santo com relação à sua inspiração. Na concepção
reformada, se alguém crê, de fato, na autoridade suprema das Escrituras como
regra de fé e prática, o faz como resultado da ação do Espírito Santo. É ele, e
só ele, quem pode persuadir alguém da autoridade da Bíblia.
Essa persuasão não significa de
modo algum uma revelação adicional do Espírito. Significa, sim, que a ação do
Espírito na alma de uma pessoa, iluminando seu coração e sua mente em trevas,
regenerando-a, fazendo-a nova criatura, dissipa as trevas espirituais da sua mente,
remove a obscuridade do seu coração, permitindo que reconheça a autoridade
divina das Escrituras. O Apóstolo Paulo trata deste assunto escrevendo aos
coríntios. Ele explica, na sua primeira carta, que, "o homem natural não
aceita as cousas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode
entendê-las porque elas se discernem espiritualmente" (1 Co 2.14). O homem
natural, em estado de pecado, perdeu a sua capacidade original de compreender
as coisas espirituais. Ele não pode, portanto, reconhecer a autoridade das Escrituras;
ele não tem capacidade para isso. Na sua segunda carta aos coríntios o Apóstolo
é ainda mais explícito, ao observar que,
...se o nosso
evangelho ainda está encoberto, é para os que se perdem que está encoberto, nos
quais o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes
não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de
Deus... Porque Deus que disse: de trevas resplandecerá luz —, ele mesmo resplandeceu
em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face
de Cristo (2 Co 4.3-4,6).
O que Paulo afirma aqui é que o
homem natural, o incrédulo, está cego como resultado da obra do diabo, que o
fez cair. Nesse estado, ele está como um deficiente visual, que não consegue
perceber nem mesmo a luz do sol. Pode-se compreender melhor o testemunho
interno do Espírito com esta ilustração. O testemunho do Espírito não é uma
nova luz no coração, mas a sua ação através da qual ele abre os olhos de um
pecador, permitindo-lhe reconhecer a verdade que lá estava, mas não podia ser
vista por causa da sua cegueira espiritual.
Deve-se ter em mente, entretanto
— e esse é o ponto enfatizado aqui —, que esse testemunho interno do Espírito
Santo diz respeito à certeza do crente com relação à plena autoridade das
Escrituras, e não à própria autoridade inerente das Escrituras. A convicção de
um crente de que as Escrituras têm autoridade é subjetiva, mas a autoridade das
Escrituras é objetiva. Esteja-se ou não convencido da sua autoridade, a Bíblia
é e continua objetivamente autoritativa. A neo-ortodoxia existencialista
confunde estas coisas e defende a subjetividade da própria autoridade da
Bíblia. Para eles, a revelação bíblica só é verdade divina quando fala ao nosso
coração. Como dizem, "as Escrituras não são, mas se tornam a Palavra de Deus"
quando existencializadas.
C. Escopo da Autoridade das
Escrituras
Essas posições da teologia
liberal e da neo-ortodoxia com relação à origem e à certeza da autoridade das
Escrituras são seríssimas. Contudo, talvez mais séria ainda (por ser mais
sutil) é a questão relacionada ao escopo da autoridade das Escrituras.
Uma nova concepção da autoridade
das Escrituras tem surgido entre os eruditos evangélicos (inclusive reformados
de renome, tais como G. C. Berkouwer), conhecida como neo-evangélica. O
neo-evangelicalismo limita o escopo (a área) da autoridade das Escrituras ao
seu propósito salvífico. Segundo essa concepção, a autoridade das Escrituras
limita-se à revelação de assuntos diretamente relacionados à salvação, a
assuntos religiosos.
A doutrina neo-evangélica faz
diferença entre o conteúdo salvífico das Escrituras e o seu contexto salvífico,
reivindicando autoridade e inerrância apenas para o primeiro. Mas tal posição
não reflete nem se coaduna com a posição reformada e protestante histórica.
Para esta, o escopo da autoridade das Escrituras é todo o seu cânon. É verdade
que a Bíblia não se propõe a ser um compêndio científico ou um livro histórico.
Mas, ainda assim, todas as afirmativas nelas contidas, sejam elas de caráter
teológico, prático, histórico ou científico, são inerrantes e autoritativas.
Os principais problemas
relacionados com a posição neo-evangélica quanto à autoridade das Escrituras
são os seguintes: Primeiro, como distinguir o conteúdo salvífico do seu contexto
salvífico? É impossível. As Escrituras são a Palavra de Deus revelada na
história. Segundo, como delimitar o que está ou não está diretamente
relacionado ao propósito salvífico, se o propósito da obra da redenção não é
meramente salvar o homem, mas restaurar o cosmo? Que porções das Escrituras
ficariam de fora do escopo da salvação? Como Ridderbos admite, "a Bíblia
não é apenas o livro da conversão, mas também o livro da história e o livro da
Criação..." Que áreas da vida humana ficariam de fora da obra da redenção?
A arte, a ciência, a história, a ética, a moral? Quem delimitaria as fronteiras
entre o que está ou não incluído no propósito salvífico? Admitir, portanto, o
conceito neo-evangélico de autoridade das Escrituras é cair na cilada liberal
do cânon dentro do cânon, e colocar a razão humana como juiz supremo de fé e
prática, pois neste caso competirá ao homem determinar o que é ou não propósito
salvífico.
Conclusão
Em última instância, a questão da
autoridade das Escrituras pode ser resumida na seguinte pergunta: quem tem a
última palavra, Deus, falando através das Escrituras, ou o homem, por meio de
suas tradições, sentimentos ou razão? A resposta dos Reformadores foi clara.
Embora reconhecendo que o propósito especial das Escrituras não é histórico,
moral ou científico, mas salvífico, eles não diminuíram a sua autoridade de
forma alguma: nem por adições ou suplementos, nem por reduções ou limitações de
qualquer natureza. A fé reformado-puritana reconhece a autoridade de todo o
conteúdo das Escrituras, e sua plena suficiência e suprema autoridade em
matéria de fé e práticas eclesiásticas.
Tão importante foi a redescoberta
destas doutrinas pelos Reformadores, que pode-se afirmar que, da aplicação
prática das mesmas, decorreu, em grande parte, a profunda reforma doutrinária,
eclesiástica e litúrgica que deu origem às igrejas protestantes. Todas as doutrinas
foram submetidas à autoridade das Escrituras. Todos os elementos de culto,
cerimônias e práticas eclesiásticas foram submetidos ao escrutínio da Palavra
de Deus. A própria vida (trabalho, lazer, educação, casamento, etc.) foi
avaliada pelo ensino suficiente e autoritativo das Escrituras. Muito entulho
doutrinário teve que ser rejeitado. Muitas tradições e práticas religiosas
acumuladas no curso dos séculos foram reprovadas quando submetidas ao teste da
suficiência e da autoridade suprema das Escrituras. E a profunda reforma
religiosa do século XVI foi assim empreendida.
Mas muito tempo já se passou
desde então. O evangelicalismo moderno recebeu, especialmente do século
passado, um legado teológico, eclesiástico e litúrgico que precisa ser urgentemente
submetido ao teste da doutrina reformada da autoridade suprema das Escrituras.
É tempo de reconsiderar as implicações desta doutrina. É tempo de reavaliar a
nossa fé, nossas práticas eclesiásticas e nossas próprias vidas à luz desta
doutrina. Afinal, admitimos que a Igreja reformada deve estar sempre se
reformando — não pela conformação constante às últimas novidades, mas pelo
retorno e conformação contínuos ao ensino das Escrituras.
Sabendo que a nossa natureza
pecaminosa nos impulsiona em direção ao erro e ao pecado, conhecendo o engano e
a corrupção do nosso próprio coração, reconhecendo os dias difíceis pelos quais
passa o evangelicalismo moderno (particularmente no Brasil), e a ojeriza
doutrinária, a exegese superficial e a ignorância histórica que em grande parte
caracterizam o evangelicalismo moderno no nosso país, não temos o direito de
assumir que nossa fé e práticas eclesiásticas sejam corretas, simplesmente por
serem geralmente assim consideradas. É necessário submeter nossa fé e práticas
eclesiásticas à autoridade suprema das Escrituras.
Assim fazendo, não é improvável
que nós, à semelhança dos Reformadores, também tenhamos que rejeitar
considerável entulho teológico, eclesiástico e litúrgico acumulados nos últimos
séculos. Não é improvável que venhamos a nos surpreender, ao descobrir um evangelicalismo
profundamente tradicionalista, subjetivo e racionalista. Mas não é improvável
também que venhamos a presenciar uma nova e profunda reforma religiosa em nosso
país. Que assim seja!
William Ames, A Fresh Suit against Human Ceremonies
in God’s Worship (Rotterdam, 1633); David Calderwood, Against Festival
Days, 1618 (Dallas: Naphtali Press, 1996); George Gillespie, Dispute
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Robert Ogle and Oliver & Boyd, 1844); e John Owen, "A Discourse
concerning Liturgies and their Impositions," em The Works of John Owen,
vol. 15 (Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1965).
John MacArthur Jr., Com Vergonha do Evangelho:
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1997) e Paulo Romeiro, Evangélicos em Crise: Decadência Doutrinária na
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