BIBLIA
E SEUS DESAFIOS
Thomas
Hobbes e Baruch Spinoza figuram, entre os pensadores modernos, como os
responsáveis por lançar as bases do que entendemos como o método
histórico-crítico de interpretação das escrituras bíblicas. Levando a cabo a
tarefa de tornar a vida neste mundo a única que importa, primeiro reivindicada
por pensadores renascentistas, como Maquiavel, Hobbes, com sua tentativa de
tornar o soberano do Estado o intérprete último das escrituras, e Spinoza, com
seu articulado método interpretativo, fizeram com que o entendimento dos textos
ditos sagrados fosse alterado de maneira até então nunca vista, criando um
marco para toda a modernidade.
Spinoza,
aprimorando uma tarefa empreendida, primeiro por alguns pensadores
renascentistas, depois por Hobbes, estabelece as bases para o método de crítica
das escrituras moderno, se pautando essencialmente pelo estudo histórico dos
textos, excluindo por completo quaisquer vestígios do aparato teológico
anteriormente utilizado na leitura da Bíblia, e reivindicando contundentemente que
ela fosse lida e interpretada apenas como um livro comum, livre de quaisquer
apelos sobrenaturais e à superstição, e como essas inovações contribuíram para
ampliar o panorama intelectual, tanto de um ponto de vista teológico, como
também filosófico.
A
Reforma fez com que se desenvolvesse, no Ocidente, uma considerável
desconfiança com as interpretações alegóricas das escrituras. No mundo cristão,
grandes intérpretes, tais como Gregório e Tomás de Aquino, forneceram as bases
para a interpretação das escrituras, e sempre houve alguma precaução no uso de
leituras alegóricas. Os reformados protestantes, no entanto, sempre se
mostraram desconfortáveis com as liberdades desse tipo de interpretação e,
ainda que tenham tentado ler a Bíblia de uma forma mais literal que alegórica,
o foco ainda permanecia no seu caráter teológico. Não tardou para que essa
forma de interpretação literal provesse as bases teológicas para teorias
políticas em oposição a uma igreja transnacional. Tal posicionamento enseja a
compreensão moderna da religião.
Com
os teóricos políticos, o foco muda do teológico para o histórico. Enquanto é
possível argumentar que Hobbes e Spinoza também expressaram preocupações
teológicas, seus argumentos no que concerne à Bíblia não expressam tais
preocupações, mas dizem respeito ao controle dos corpos, muito mais do que das
almas, das pessoas por parte do Estado, então relegado ao reino do privado,
graças, em larga medida, aos reformadores protestantes. O foco da interpretação
bíblica se distancia das primordiais preocupações com o natural e o
sobrenatural e se volta ao natural e ao histórico apenas. Hobbes e,
especialmente, Spinoza avançaram muito além de seus predecessores, e é possível
perceber em suas obras as bases do que passamos a entender como o método
histórico-crítico da interpretação bíblica.
De
fato, tanto Hobbes quanto Spinoza passam a focar no plano de fundo histórico da
Bíblia com uma força jamais vista antes, e ainda que ambos descem margens para
leituras teológicas das escrituras, as próprias bases de suas metodologias já
indicavam que uma leitura teológica da Bíblia seria virtualmente impossível. Em
seu Leviatã, Hobbes argumenta que uma interpretação bíblica precisaria
necessariamente seguir os ditames da razão, que são opostos aos da teologia.
Ao
final, no entanto, Hobbes argumenta, com base na própria Bíblia, que o poder
temporal de cada estado seria responsável pela religião dentro de seu próprio
reino. Sem o estado Leviatã, impomos uma ameaça mortal uns aos outros, como
sugerido por sua afirmação de que “durante o tempo em que os homens vivem sem
um poder comum, poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se
encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos
os homens contra todos os homens”. Assim sendo, apenas o estado controlador, ou
seus oficiais apontados, estaria apto a prover interpretações oficias da
Bíblia. A importância de Hobbes para o método histórico-crítico de
interpretação bíblica está na maneira em que a lê, já que não apenas nega o papel
do sobrenatural na autoria dos textos, como também ignora as menções ao
sobrenatural nos textos. Nas passagens que fazem referência ao “Espírito
Divino”, Hobbes interpreta o Espírito de maneira naturalizada, tal como o
vento, ou como as faculdades do entendimento e, da mesma maneira, conceitos
como paraíso e inferno são tratados como meramente temporais. Essa
característica de sua abordagem foi crucialmente importante, pois sua
perspectiva política repousava largamente no medo da morte e, para o cidadão,
nada é mais ameaçador que a morte física. Assim sendo, o estado governador que
possui o poder de executar e perdoar seria a fonte última de autoridade e,
nesse sentido, os ensinamentos escatológicos eram uma ameaça à autoridade do
estado porque a jurisdição do estado não estendia ao que viesse após a morte.
“É impossível que um bem-comum subsista onde outro que não o soberano tenha o
poder de dar melhores recompensas que a vida e infligir punições piores que a
morte”. A única forma de garantir o maior controle do estado sobre a vida das
pessoas na Terra, para Hobbes, foi argumentar que nada tinha relevância além da
vida na Terra.
A
leitura naturalista e histórica da Bíblia por Hobbes necessitava do
entendimento das escrituras como um texto similar a outros textos históricos e,
mesmo reconhecendo a importância da Bíblia como uma autoridade para os
cristãos, sua aproximação metodológica da leitura do texto representa um
caminho fundamentalmente diferente de abordagem das escrituras do que havia até
então. Hobbes argumentava se utilizar da ciência e da razão em seu exame da
Bíblia, ainda que todo o seu trabalho exegético acabasse apenas por legitimar
suas opiniões políticas já existentes, especialmente a convicção de que o
soberano do Estado tinha poder absoluto sobre seus cidadãos. Ao aplicar a
interpretação bíblica dessa forma, Hobbes estendeu o conceito da Bíblia como um
livro a ser examinado como um artefato histórico, mas a compreensão mais
evidente de seu trabalho exegético é a de que este era motivado por sua
política, que visava, em último caso, garantir a autoridade do Estado.
Spinoza,
por sua vez, perpassou os resultados alcançados por Hobbes em sua nova
abordagem da crítica bíblica ao articular uma detalhada metodologia de
interpretação bíblica que, se por um lado, estava de acordo com os princípios
da filosofia racionalista em voga, por outro, se sobressai ao colocar em
questão não apenas a autoridade eclesiástica, como também a política. No que
dizia respeito a Bíblia, o foco dado à historicidade do texto por Spinoza
ultrapassa o dado por Hobbes. De fato, Spinoza julgava que nada poderia ser
feito com os textos bíblicos até que sua história completa fosse descoberta.
“Spinoza e seus seguidores multiplicaram as questões sobre a história física do
texto, até ao ponto em que a tarefa tradicional da teologia não pudesse jamais
sair de seu início”.
Assim
como Hobbes, Spinoza também removeu os elementos sobrenaturais da Bíblia e,
para ele, Deus não pode existir fora da natureza. Mais que isso, os profetas do
Antigo Testamento não eram inspirados por Deus em nenhum sentido tradicional, e
apenas possuíam uma imaginação muito vívida.
TEORIAS
DA FORMAÇÃO CANÔNICA
1)
Crítica das Fontes
A
crítica das fontes dedicou-se ao estudo dos diferentes componentes do texto bíblico,
que uma vez teriam existido isoladamente e foram posteriormente agrupados num
único texto. Ela pressupõe que os textos bíblicos são compostos e que esses
componentes se originaram de períodos históricos distintos e refletem
diferentes teologias. Como na antiguidade os autores não se preocupavam com a
questão de direitos autorais, e nem em indicar a fonte de onde copiaram
material, simplesmente aglutinaram diversas fontes escritas ao seu dispor para
formar o texto completo que temos hoje no cânon formal. Assim sendo, a tarefa
da crítica das fontes é identificar esses documentos, estudar em separado a
teologia dos mesmos no contexto histórico em que foram produzidos e depois
avaliar o sentido do texto completo à luz dos resultados. Assim encontraremos a
Palavra de Deus dentro das Escrituras. O método consiste em buscar,
primeiramente, as anomalias e irregularidades textuais, como inconsistências de
assuntos, repetição de histórias, digressões e diferenças em vocabulário e
estilo. Estas coisas apontariam para diferentes fontes documentais. Em seguida,
estudam-se as anomalias quanto aos temas e procura-se identificar em que
período da história de Israel ou da Igreja cristã o texto foi produzido.
No
Antigo Testamento, a chamada crítica das fontes tem a sua origem no comentário
de Gênesis (1753) de Jean Astruc, um médico francês, onde ele defende que
Moisés teria usado duas fontes diferentes para escrever Gênesis, uma que se
refere a Deus como Elohim e outra que se refere a Deus como Yahweh. Essa teoria
foi desenvolvida por Johnn Eichhorn em 1780, que a estendeu a todo o Pentateuco
e rejeitou a autoria mosaica. Em 1805, Wilhelm De Wette defendeu que nenhuma
das partes que compõem o Pentateuco foi escrita antes de Davi. Ele também
defendeu a existência do documento D, escrito como propaganda ideológica na
época do rei Josias. Hermann Hupfeld completou a teoria com o quarto documento,
P, em 1853. Julius Wellhausen foi quem melhor elaborou esta hipótese, que veio
a ser chamada de “hipótese documentária”.
No
Novo Testamento, a crítica das fontes concentrou-se nos Evangelhos Sinóticos.
Seu objetivo era descobrir as fontes literárias usadas na composição de cada
Evangelho, bem como estabelecer a dependência literária entre eles. A teoria
das duas fontes, defendida inicialmente por C. H. Weisse (1838) para resolver o
problema sinótico, teoria que ainda é utilizada pela maioria dos estudiosos
bíblico da atualidade. Em ambas as hipóteses da teoria, o Evangelho de Marcos
foi o primeiro evangelho a ser escrito e foi uma das duas fontes para o
Evangelho de Mateus e o Evangelho de Lucas, a outra fonte seria o documento Q,
uma coleção perdida de ensinos de Jesus.
e P. Wernle (1899), tornou-se dominante. Atualmente Eta Linnemann
condena esta proposta
2)
Crítica da Forma
Esta
metodologia tem o mesmo alvo da anterior, que é separar o cerne da casca, alvo
muito bem expresso por Bultmann em seu programa de desmitologização do Novo
Testamento. Podemos dizer que a crítica da forma, no Novo Testamento, tem seu
ponto de partida no desejo de descobrir a Palavra de Deus dentro das Escrituras
usando o critério da antiguidade das formas, como declarou Werner Kümmel,
considerado um crítico moderado:
Quanto
mais um texto aponta para a revelação histórica de Cristo e quanto mais ele foi
alterado por pensamentos exteriores ao cristianismo ou através do cristianismo
posterior, mais seguramente ele pode ser considerado como parte do cânon
normativo.
O
objetivo da crítica da forma é descobrir as formas originais dos textos
bíblicos, ainda em sua fase oral de transmissão, antes de serem submetidos à
escrita, como aparecem no cânon formal. É ainda identificar as alterações
feitas, nesta fase, pelas comunidades que receberam essas tradições, e que
posteriormente os editaram e publicaram. Conforme o critério de Kümmel, esses
textos, por serem, em sua forma final, produtos da Gemeindetheologie (teologia
da comunidade), são secundários e não fazem parte do cânon normativo.
3)
Crítica da Redação
A
crítica da redação nasceu na esteira da crítica das fontes e da crítica da
forma. Enquanto a crítica das fontes se preocupou em identificar e reconstruir
as fontes literárias (documentos) que foram usadas originalmente para a
composição do texto bíblico, e a crítica da forma com o processo de transmissão
oral pelo qual estes documentos e a tradição oral passaram, a crítica da
redação preocupa-se com os redatores, aqueles que se utilizaram destas fontes
orais ou escritas e lhes deram a forma final.
O
critério usado por essa ferramenta crítica para separar a verdade do erro no
cânon formal é descobrir os materiais originais, para, em seguida, expurgá-los
das alterações feitas pelos redatores, quando editaram os textos sagrados na
forma em que se encontram no cânon formal. De acordo com as críticas das fontes
e da forma, boa parte dos livros que compõem o Velho e o Novo Testamentos são,
em sua forma final, o resultado de um processo de coleção, edição e
harmonização de tradições antigas, de fontes anteriores que refletiam a
teologia das comunidades através de editores e escribas. O redator não foi um
mero transmissor; ele foi um autor com seus próprios pontos de vista e situação
social e religiosa; ele amoldou o seu material de acordo com esses fatores. A
tarefa da crítica da redação passou a ser descobrir a “teologia” desses
redatores e os princípios teológicos que controlaram a sua redação das fontes e
das tradições, alcançando a forma final que hoje temos.
Foi
Gerhard von Rad, no seu comentário de Gênesis, quem defendeu de forma mais
influente a abordagem do Velho Testamento do ponto de vista da teologia dos
redatores que o formaram. Nesta obra, von Rad procura sempre ir além da mera
reconstrução dos estágios iniciais no processo de formação dos textos bíblicos,
e escutar o redator, perguntando de que maneira ele intentou que lêssemos o
texto final, e o que estava tentando nos dizer.
Perspectiva
Pós-Moderna : As palavras estranhamente proféticas do filósofo Friederich
Nietzsche: “Não podemos nos livrar de Deus enquanto não nos livrarmos da
gramática”. Esta idéia foi repetida
posteriormente pelo ateu Bertrand Russell: “A linguagem atual incorpora a
metafísica da Idade da Pedra”. O desejo de libertar o ser humano da opressão de
um Deus está fortemente relacionada à questão da linguagem e seu significado.
Às
vezes, a abordagem daqueles que procuram questionar a possibilidade de um
significado definitivo na linguagem parece mais um jogo esquisito. O filósofo
Ludwig Wittgenstein (1889- 1951) teve grande influência nessa área. Ele afirmou
que cada função da linguagem ocorre dentro de um sistema separado e
aparentemente fechado, com suas próprias regras. Isso significa que qualquer
função da linguagem seria semelhante a um jogo. É necessário conhecer as regras
do jogo e ter bom senso em relação ao significado dos termos para usar a
linguagem. Cada uso da linguagem constitui um “jogo de linguagem” separado, e
alguns jogos têm muito pouco a ver entre si.
Quando
aplicado à Bíblia, isso significa que o contexto do leitor é que determina a
interpretação do texto. Seria impossível estabelecer um significado único, que
fosse aceito por diferentes culturas, línguas, situações ou “jogos”.
O
poder da narrativa épica (ou “metanarrativa”) ao unir os seres humanos do mundo
inteiro, integrando-se às histórias de cada lugar, está em decadência. Muitos a
comparam a um ditador restringindo a liberdade das pessoas. O pensador
Jean-François Lyotard argumenta que a visão pós-moderna requer que se faça uma
“guerra contra o totalitarismo”.
Foucault
continua argumentando que existe uma interação essencial entre conhecimento e
poder. Lembrando a expressão de Nietzsche, “o desejo de poder”, Foucault chama
a procura da verdade de um “desejo de conhecimento” que estabelece sua própria
“verdade” arbitrariamente. Isto sugere que ao lermos a Bíblia, devemos
suspeitar dos escritores, pois eles estão exercendo poder sobre nós, e
suspeitar mais ainda de qualquer pessoa que tente nos ajudar a interpretar a
Bíblia. Assim no pensamento pós-moderno qualquer tentativa de pregar ou
explicar a Bíblia não passa de uma tentativa desastrosa de obter poder sobre
outra pessoa.
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