quarta-feira, 17 de maio de 2017

BIBLIA E SEUS DESAFIOS
Thomas Hobbes e Baruch Spinoza figuram, entre os pensadores modernos, como os responsáveis por lançar as bases do que entendemos como o método histórico-crítico de interpretação das escrituras bíblicas. Levando a cabo a tarefa de tornar a vida neste mundo a única que importa, primeiro reivindicada por pensadores renascentistas, como Maquiavel, Hobbes, com sua tentativa de tornar o soberano do Estado o intérprete último das escrituras, e Spinoza, com seu articulado método interpretativo, fizeram com que o entendimento dos textos ditos sagrados fosse alterado de maneira até então nunca vista, criando um marco para toda a modernidade.
Spinoza, aprimorando uma tarefa empreendida, primeiro por alguns pensadores renascentistas, depois por Hobbes, estabelece as bases para o método de crítica das escrituras moderno, se pautando essencialmente pelo estudo histórico dos textos, excluindo por completo quaisquer vestígios do aparato teológico anteriormente utilizado na leitura da Bíblia, e reivindicando contundentemente que ela fosse lida e interpretada apenas como um livro comum, livre de quaisquer apelos sobrenaturais e à superstição, e como essas inovações contribuíram para ampliar o panorama intelectual, tanto de um ponto de vista teológico, como também filosófico.
A Reforma fez com que se desenvolvesse, no Ocidente, uma considerável desconfiança com as interpretações alegóricas das escrituras. No mundo cristão, grandes intérpretes, tais como Gregório e Tomás de Aquino, forneceram as bases para a interpretação das escrituras, e sempre houve alguma precaução no uso de leituras alegóricas. Os reformados protestantes, no entanto, sempre se mostraram desconfortáveis com as liberdades desse tipo de interpretação e, ainda que tenham tentado ler a Bíblia de uma forma mais literal que alegórica, o foco ainda permanecia no seu caráter teológico. Não tardou para que essa forma de interpretação literal provesse as bases teológicas para teorias políticas em oposição a uma igreja transnacional. Tal posicionamento enseja a compreensão moderna da religião.
Com os teóricos políticos, o foco muda do teológico para o histórico. Enquanto é possível argumentar que Hobbes e Spinoza também expressaram preocupações teológicas, seus argumentos no que concerne à Bíblia não expressam tais preocupações, mas dizem respeito ao controle dos corpos, muito mais do que das almas, das pessoas por parte do Estado, então relegado ao reino do privado, graças, em larga medida, aos reformadores protestantes. O foco da interpretação bíblica se distancia das primordiais preocupações com o natural e o sobrenatural e se volta ao natural e ao histórico apenas. Hobbes e, especialmente, Spinoza avançaram muito além de seus predecessores, e é possível perceber em suas obras as bases do que passamos a entender como o método histórico-crítico da interpretação bíblica.
De fato, tanto Hobbes quanto Spinoza passam a focar no plano de fundo histórico da Bíblia com uma força jamais vista antes, e ainda que ambos descem margens para leituras teológicas das escrituras, as próprias bases de suas metodologias já indicavam que uma leitura teológica da Bíblia seria virtualmente impossível. Em seu Leviatã, Hobbes argumenta que uma interpretação bíblica precisaria necessariamente seguir os ditames da razão, que são opostos aos da teologia.
Ao final, no entanto, Hobbes argumenta, com base na própria Bíblia, que o poder temporal de cada estado seria responsável pela religião dentro de seu próprio reino. Sem o estado Leviatã, impomos uma ameaça mortal uns aos outros, como sugerido por sua afirmação de que “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum, poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens”. Assim sendo, apenas o estado controlador, ou seus oficiais apontados, estaria apto a prover interpretações oficias da Bíblia. A importância de Hobbes para o método histórico-crítico de interpretação bíblica está na maneira em que a lê, já que não apenas nega o papel do sobrenatural na autoria dos textos, como também ignora as menções ao sobrenatural nos textos. Nas passagens que fazem referência ao “Espírito Divino”, Hobbes interpreta o Espírito de maneira naturalizada, tal como o vento, ou como as faculdades do entendimento e, da mesma maneira, conceitos como paraíso e inferno são tratados como meramente temporais. Essa característica de sua abordagem foi crucialmente importante, pois sua perspectiva política repousava largamente no medo da morte e, para o cidadão, nada é mais ameaçador que a morte física. Assim sendo, o estado governador que possui o poder de executar e perdoar seria a fonte última de autoridade e, nesse sentido, os ensinamentos escatológicos eram uma ameaça à autoridade do estado porque a jurisdição do estado não estendia ao que viesse após a morte. “É impossível que um bem-comum subsista onde outro que não o soberano tenha o poder de dar melhores recompensas que a vida e infligir punições piores que a morte”. A única forma de garantir o maior controle do estado sobre a vida das pessoas na Terra, para Hobbes, foi argumentar que nada tinha relevância além da vida na Terra.
A leitura naturalista e histórica da Bíblia por Hobbes necessitava do entendimento das escrituras como um texto similar a outros textos históricos e, mesmo reconhecendo a importância da Bíblia como uma autoridade para os cristãos, sua aproximação metodológica da leitura do texto representa um caminho fundamentalmente diferente de abordagem das escrituras do que havia até então. Hobbes argumentava se utilizar da ciência e da razão em seu exame da Bíblia, ainda que todo o seu trabalho exegético acabasse apenas por legitimar suas opiniões políticas já existentes, especialmente a convicção de que o soberano do Estado tinha poder absoluto sobre seus cidadãos. Ao aplicar a interpretação bíblica dessa forma, Hobbes estendeu o conceito da Bíblia como um livro a ser examinado como um artefato histórico, mas a compreensão mais evidente de seu trabalho exegético é a de que este era motivado por sua política, que visava, em último caso, garantir a autoridade do Estado.
Spinoza, por sua vez, perpassou os resultados alcançados por Hobbes em sua nova abordagem da crítica bíblica ao articular uma detalhada metodologia de interpretação bíblica que, se por um lado, estava de acordo com os princípios da filosofia racionalista em voga, por outro, se sobressai ao colocar em questão não apenas a autoridade eclesiástica, como também a política. No que dizia respeito a Bíblia, o foco dado à historicidade do texto por Spinoza ultrapassa o dado por Hobbes. De fato, Spinoza julgava que nada poderia ser feito com os textos bíblicos até que sua história completa fosse descoberta. “Spinoza e seus seguidores multiplicaram as questões sobre a história física do texto, até ao ponto em que a tarefa tradicional da teologia não pudesse jamais sair de seu início”.
Assim como Hobbes, Spinoza também removeu os elementos sobrenaturais da Bíblia e, para ele, Deus não pode existir fora da natureza. Mais que isso, os profetas do Antigo Testamento não eram inspirados por Deus em nenhum sentido tradicional, e apenas possuíam uma imaginação muito vívida.

TEORIAS DA FORMAÇÃO CANÔNICA
1) Crítica das Fontes
A crítica das fontes dedicou-se ao estudo dos diferentes componentes do texto bíblico, que uma vez teriam existido isoladamente e foram posteriormente agrupados num único texto. Ela pressupõe que os textos bíblicos são compostos e que esses componentes se originaram de períodos históricos distintos e refletem diferentes teologias. Como na antiguidade os autores não se preocupavam com a questão de direitos autorais, e nem em indicar a fonte de onde copiaram material, simplesmente aglutinaram diversas fontes escritas ao seu dispor para formar o texto completo que temos hoje no cânon formal. Assim sendo, a tarefa da crítica das fontes é identificar esses documentos, estudar em separado a teologia dos mesmos no contexto histórico em que foram produzidos e depois avaliar o sentido do texto completo à luz dos resultados. Assim encontraremos a Palavra de Deus dentro das Escrituras. O método consiste em buscar, primeiramente, as anomalias e irregularidades textuais, como inconsistências de assuntos, repetição de histórias, digressões e diferenças em vocabulário e estilo. Estas coisas apontariam para diferentes fontes documentais. Em seguida, estudam-se as anomalias quanto aos temas e procura-se identificar em que período da história de Israel ou da Igreja cristã o texto foi produzido.
No Antigo Testamento, a chamada crítica das fontes tem a sua origem no comentário de Gênesis (1753) de Jean Astruc, um médico francês, onde ele defende que Moisés teria usado duas fontes diferentes para escrever Gênesis, uma que se refere a Deus como Elohim e outra que se refere a Deus como Yahweh. Essa teoria foi desenvolvida por Johnn Eichhorn em 1780, que a estendeu a todo o Pentateuco e rejeitou a autoria mosaica. Em 1805, Wilhelm De Wette defendeu que nenhuma das partes que compõem o Pentateuco foi escrita antes de Davi. Ele também defendeu a existência do documento D, escrito como propaganda ideológica na época do rei Josias. Hermann Hupfeld completou a teoria com o quarto documento, P, em 1853. Julius Wellhausen foi quem melhor elaborou esta hipótese, que veio a ser chamada de “hipótese documentária”.
No Novo Testamento, a crítica das fontes concentrou-se nos Evangelhos Sinóticos. Seu objetivo era descobrir as fontes literárias usadas na composição de cada Evangelho, bem como estabelecer a dependência literária entre eles. A teoria das duas fontes, defendida inicialmente por C. H. Weisse (1838) para resolver o problema sinótico, teoria que ainda é utilizada pela maioria dos estudiosos bíblico da atualidade. Em ambas as hipóteses da teoria, o Evangelho de Marcos foi o primeiro evangelho a ser escrito e foi uma das duas fontes para o Evangelho de Mateus e o Evangelho de Lucas, a outra fonte seria o documento Q, uma coleção perdida de ensinos de Jesus.  e P. Wernle (1899), tornou-se dominante. Atualmente Eta Linnemann condena esta proposta
2) Crítica da Forma
Esta metodologia tem o mesmo alvo da anterior, que é separar o cerne da casca, alvo muito bem expresso por Bultmann em seu programa de desmitologização do Novo Testamento. Podemos dizer que a crítica da forma, no Novo Testamento, tem seu ponto de partida no desejo de descobrir a Palavra de Deus dentro das Escrituras usando o critério da antiguidade das formas, como declarou Werner Kümmel, considerado um crítico moderado:
Quanto mais um texto aponta para a revelação histórica de Cristo e quanto mais ele foi alterado por pensamentos exteriores ao cristianismo ou através do cristianismo posterior, mais seguramente ele pode ser considerado como parte do cânon normativo.
O objetivo da crítica da forma é descobrir as formas originais dos textos bíblicos, ainda em sua fase oral de transmissão, antes de serem submetidos à escrita, como aparecem no cânon formal. É ainda identificar as alterações feitas, nesta fase, pelas comunidades que receberam essas tradições, e que posteriormente os editaram e publicaram. Conforme o critério de Kümmel, esses textos, por serem, em sua forma final, produtos da Gemeindetheologie (teologia da comunidade), são secundários e não fazem parte do cânon normativo.
3) Crítica da Redação
A crítica da redação nasceu na esteira da crítica das fontes e da crítica da forma. Enquanto a crítica das fontes se preocupou em identificar e reconstruir as fontes literárias (documentos) que foram usadas originalmente para a composição do texto bíblico, e a crítica da forma com o processo de transmissão oral pelo qual estes documentos e a tradição oral passaram, a crítica da redação preocupa-se com os redatores, aqueles que se utilizaram destas fontes orais ou escritas e lhes deram a forma final.
O critério usado por essa ferramenta crítica para separar a verdade do erro no cânon formal é descobrir os materiais originais, para, em seguida, expurgá-los das alterações feitas pelos redatores, quando editaram os textos sagrados na forma em que se encontram no cânon formal. De acordo com as críticas das fontes e da forma, boa parte dos livros que compõem o Velho e o Novo Testamentos são, em sua forma final, o resultado de um processo de coleção, edição e harmonização de tradições antigas, de fontes anteriores que refletiam a teologia das comunidades através de editores e escribas. O redator não foi um mero transmissor; ele foi um autor com seus próprios pontos de vista e situação social e religiosa; ele amoldou o seu material de acordo com esses fatores. A tarefa da crítica da redação passou a ser descobrir a “teologia” desses redatores e os princípios teológicos que controlaram a sua redação das fontes e das tradições, alcançando a forma final que hoje temos.
Foi Gerhard von Rad, no seu comentário de Gênesis, quem defendeu de forma mais influente a abordagem do Velho Testamento do ponto de vista da teologia dos redatores que o formaram. Nesta obra, von Rad procura sempre ir além da mera reconstrução dos estágios iniciais no processo de formação dos textos bíblicos, e escutar o redator, perguntando de que maneira ele intentou que lêssemos o texto final, e o que estava tentando nos dizer.
Perspectiva Pós-Moderna : As palavras estranhamente proféticas do filósofo Friederich Nietzsche: “Não podemos nos livrar de Deus enquanto não nos livrarmos da gramática”.  Esta idéia foi repetida posteriormente pelo ateu Bertrand Russell: “A linguagem atual incorpora a metafísica da Idade da Pedra”. O desejo de libertar o ser humano da opressão de um Deus está fortemente relacionada à questão da linguagem e seu significado.
Às vezes, a abordagem daqueles que procuram questionar a possibilidade de um significado definitivo na linguagem parece mais um jogo esquisito. O filósofo Ludwig Wittgenstein (1889- 1951) teve grande influência nessa área. Ele afirmou que cada função da linguagem ocorre dentro de um sistema separado e aparentemente fechado, com suas próprias regras. Isso significa que qualquer função da linguagem seria semelhante a um jogo. É necessário conhecer as regras do jogo e ter bom senso em relação ao significado dos termos para usar a linguagem. Cada uso da linguagem constitui um “jogo de linguagem” separado, e alguns jogos têm muito pouco a ver entre si.
Quando aplicado à Bíblia, isso significa que o contexto do leitor é que determina a interpretação do texto. Seria impossível estabelecer um significado único, que fosse aceito por diferentes culturas, línguas, situações ou “jogos”.
O poder da narrativa épica (ou “metanarrativa”) ao unir os seres humanos do mundo inteiro, integrando-se às histórias de cada lugar, está em decadência. Muitos a comparam a um ditador restringindo a liberdade das pessoas. O pensador Jean-François Lyotard argumenta que a visão pós-moderna requer que se faça uma “guerra contra o totalitarismo”.
Foucault continua argumentando que existe uma interação essencial entre conhecimento e poder. Lembrando a expressão de Nietzsche, “o desejo de poder”, Foucault chama a procura da verdade de um “desejo de conhecimento” que estabelece sua própria “verdade” arbitrariamente. Isto sugere que ao lermos a Bíblia, devemos suspeitar dos escritores, pois eles estão exercendo poder sobre nós, e suspeitar mais ainda de qualquer pessoa que tente nos ajudar a interpretar a Bíblia. Assim no pensamento pós-moderno qualquer tentativa de pregar ou explicar a Bíblia não passa de uma tentativa desastrosa de obter poder sobre outra pessoa.

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